O texto a seguir é extraído integralmente da obra Balbúrdia Protestante, do Pe. Júlio Maria de Lombaerde, exceto o que está entre colchetes:
O mesmo consulente diz ainda que os filhos, sendo inocentes dos pecados dos pais, como é que herdamos o pecado, e portanto sofremos as mais tristes consequências [?].
Há um equívoco na compreensão deste ato, da parte do amigo.
O pecado original não se transmite como castigo.
Tal pecado é essencialmente uma privação, é uma negação, e não uma coisa positiva.
Quando Deus criou os nossos primeiros pais, dotou-os de três espécies de dons: naturais, preternaturais e sobrenaturais.
1) Os dons naturais são as propriedades do corpo e da alma exigidas pela natureza do homem, para ele alcançar o seu fim natural [isto é, a razão e a vontade].
2) Os dons preternaturais são a imunidade do sofrimento, da ignorância, da concupiscência, da morte.
3) Os dons sobrenaturais são a graça santificante que eleva o homem à dignidade de filho de Deus, e lhe dá direito á visão beatifica do céu.
O homem, quando saiu das mãos de Deus, era adornado destes três dons, mas não tinha direito a todos estes dons. Deus lhe devia apenas os dons naturais, e no limite correspondente ao fim a alcançar.
Note bem que são dons e não direitos.
Pelo pecado Adão e Eva perderam todos os dons que excediam às exigências da natureza humana.
Os dons sobrenaturais e preternaturais lhes foram retirados por completo, ficando-lhes apenas os dons naturais, e assim mesmo reduzidos à sua expressão mais simples, pois a perda dos primeiros dons produzira o enfraquecimento nos dons naturais.
Os dons sobrenaturais foram recuperados pela Encarnação e Redenção do Salvador, mas exigem a nossa cooperação, ficando o homem privado dos dons preternaturais, que constituem o efeito permanente da queda de nossos primeiros pais.
E como se efetua a transmissão deste pecado?
Tal transmissão é logica.
Suponhamos que um rei adote e enriqueça um de seus criados, porque lhe dedica amor.
O criado torna-se senhor rico e poderoso, pela generosidade de seu amo, porém, um belo dia, o criado ricaço, desvairado pelo orgulho revolta-se contra o rei, e este último, em castigo, retira-lhe todos os bens, as honras e os privilégios que lhe tinha concedido.
De rico que era, o homem torna-se de novo pobre; de poderoso torna a ser o criado de outrora e até em graça inferior, por não merecer mais a confiança do rei.
Os filhos deste homem, que podiam ter nascido ricos, e terem sido educados na riqueza e nas honras, são pobres e sofrem privações.
Eles são inocentes. O único culpado é o pai. E por que o pecado do pai se transmite aos filhos?
Por quê?
Pela simples razão de o pai não ter direito a estes bens, ele os recebeu de presente, os perdeu e, pelo fato, perderam-nos os filhos, e isso com toda justiça, pois eles não têm direito senão ao que possui o pai.
Assim acontece com o pecado original.
Adão e Eva perderam o que lhes tinha sido dado gratuitamente por Deus.
Por sua natureza, eles eram pobres, só tinham a natureza humana, Deus não lhes devia nenhum dom sobrenatural, nem preternatural.
Desobedecendo, Deus retirou-lhes estes últimos dons, e Adão e Eva tornaram-se pobres, decaídos.
É neste estado de decadência que eles transmitem a natureza humana a seus filhos, e eis porque estes filhos nascem num estado de decadência, sem poderem reclamar, pois recebem conforme às suas condições. Filhos de pobre, eles também são pobres.
O amigo está vendo que é fácil conceber a transmissão do pecado original, tanto em si mesmo, como em suas consequências; basta lembrar-se que o pecado original é essencialmente privação de uma qualidade que não é essencial à natureza humana, e que era dada ao homem como mero presente da bondade divina.
O doador pode retirar os seus dons à vontade e o inferior nada pode reclamar, pois quem dá graça não contrai nenhuma obrigação de continuar os seus dons.
Os animais ficaram tais quais Deus os criou.
O homem, por bondade divina, foi elevado a uma ordem superior: ele se tornou indigno, e Deus retirando o que lhe tinha dado gratuitamente, não cometeu nenhuma injustiça; o homem fica possuindo o que é dele - a natureza humana.
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