Às provas teológicas, conformes ao bom senso, ao raciocínio e à tradição do mundo cristão, é preciso juntar as provas bíblicas.
Os protestantes só acreditam na Bíblia.
Sem refutar o que há de irracional nesta asserção, pode-se dizer que, segundo o testemunho da própria Bíblia, todas as verdades não estão contidas na Bíblia.
É para refutar de antemão os futuros protestantes que São João termina o seu Evangelho com estas palavras: Muitas outras coisas há que fez Jesus, as quais, se se escrevessem uma por uma, creio que nem no mundo todo poderia caber os livros que seria preciso escrever (S. João 21, 25).
É apenas uma hipérbole empregada pelo Evangelista para mostrar que, além do que está escrito, Jesus fez e ensinou ainda muitas coisas.
Estas coisas não escritas foram recolhidas e transmitidas pelos Apóstolos aos seus sucessores, e mais tarde foram escritas pelos primeiros Doutores da Igreja, em caráter não-inspirado, por iniciativa particular.
É o que São Paulo chama a tradição.
Conserve as tradições que aprendestes ou por nossas palavras ou nossa carta (2Tes. 2, 15).
Tal tradição é unânime em afirmar a Imaculada Conceição, como mostrarei adiante, limitando-me aqui em procurar a sua base na Sagrada Escritura, que os amigos protestantes aceitarão mais facilmente que as provas teológicas.
I. As provas Bíblicas
Uma verdade pode ser revelada na Bíblia de dois modos: explicitamente e implicitamente.
Uma verdade está explicitamente na Sagrada Escritura quando, sem raciocínio, tal verdade se apresenta claramente ao espírito, por exemplo: Maria de quem nasceu Jesus: - é a revelação explícita da maternidade divina da Virgem Santa.
À primeira vista qualquer pessoa compreende que tal expressão significa que Maria é mãe de Jesus.
Uma verdade pode ser revelada também implicitamente, quando ela está contida em outra verdade claramente revelada, podendo-se, pelo raciocínio, deduzi-la desta verdade.
Por exemplo: Maria é Mãe de Jesus.
Ora, uma Mãe é uma Medianeira nata perto do Filho.
Logo, Maria é Medianeira entre Jesus Cristo e os homens.
A mediação universal da Virgem Imaculada é pois uma verdade contida implicitamente no texto citado no Evangelho.
A Imaculada Conceição não é revelada explicitamente, mas o é implicitamente, como consequência de verdades explicitamente reveladas.
São estas verdades que devemos estudar aqui, para depois completa-las pelo testemunho explícito da tradição dos primeiros séculos.
Procuremos uma prova sólida da Imaculada Conceição na própria obra da encarnação.
A obra da Encarnação, no plano divino, inclui Maria e inclui a sua alma, a sua pessoa e por conseguinte a sua Conceição.
Maria Santíssima é Mãe de Jesus Cristo; e é Mãe Virgem.
O anjo Gabriel foi enviado... a uma Virgem (Luc. 1, 26).
Eis que não conheço varão (Ibid. 34).
O Espírito Santo descerá sobre ti (Ibid. 35).
A virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
A maternidade virginal de Maria é uma verdade explicitamente revelada.
Ora, a mesma razão que fez nascer Jesus de uma Mãe Virgem, deve fazê-lo nascer uma Mãe Imaculada. A conceição imaculada é pois uma verdade implicitamente revelada na revelação explícita de sua Maternidade Virginal.
Examinemos de perto este argumento.
Por que quis Deus nascer de uma Mãe Virgem?
Para que a santidade que devia adornar a sua pessoa viesse de uma fonte igualmente pura, da parte do corpo como da parte da alma.
A alma de Jesus Cristo foi criada por Deus e inseparavelmente unida à divindade.
Era uma alma santíssima, obra prima de Deus infinito.
O corpo de Jesus Cristo foi-lhe fornecido do sangue de Maria, e este corpo foi inseparavelmente unido à divindade, como o foi a sua alma.
Este corpo devia pois ser santíssimo, na altura da alma santíssima, à qual devia ser unido substancialmente, para constituir a pessoa divina de Cristo.
O corpo devia ser digno da alma; e ambos deviam ser dignos da divindade.
Este corpo devia, pois, ser formado de um sangue puríssimo, de um sangue imaculado em sua origem, como em seu estado atual.
Por isso, a Virgindade de Maria foi como a condição de sua maternidade.
Vemos, pelo Evangelho, que Deus reservou-se esta virgindade, que Maria lhe tinha consagrado, até nos laços do matrimônio, como devendo ser a habitação do Santo dos Santos.
O anjo Gabriel foi enviado... a uma Virgem... desposada, não conhecendo varão... E por isso mesmo o Santo, que deve nascer dela, será chamado Filho de Deus (Luc. 1, 35).
Desde esta hora, Maria estava cheia de graça, era bendita entre as mulheres... e o Senhor estava com ela (Luc. 1, 28).
Esta virgindade, esta plenitude de graças, esta benção eram a condição anterior e preparatória da Maternidade de Maria.
Ora, tal
anterioridade devia necessariamente remontar até a sua conceição, para que, de uma Virgem sem pecado, nascesse sem pecado Aquele que vinha apagar o pecado, como diz admiravelmente São Bernardo
[2].
De fato, que motivo Deus teria tido em exigir em Maria esta santidade virginal antes da Conceição de Jesus Cristo, que não fosse bastante forte para fazer remonta-la à própria conceição de Maria?
A santidade do Filho, sendo o motivo da santidade anterior de Maria, não podia contentar-se completamente, senão possuindo Maria inteira, desde a sua origem.
O que era Maria quando concebeu Jesus Cristo, ela o devia ser desde o tempo em que ela mesma foi concebida.
A personalidade da Santíssima Virgem fica identificada com a sua virgindade, com a sua pureza imaculada.
Ela é revestida desta pureza como de um sol; e o prodígio, que lhe fez conservar esta virgindade na conceição e no parto de seu Filho, nos garante a pureza de sua própria conceição.
Como se vê, a revelação explícita da maternidade divina da Virgem Santa inclui a revelação implícita de sua Imaculada Conceição.
É uma primeira prova Bíblica e que já seria suficiente para convencer a um homem sem preconceitos e desejoso de conhecer a verdade, em vez de querer defender as suas ideias errôneas.
Vamos adiante; encontraremos muitas outras passagens do mesmo valor comprovativo.
II. O Tabernáculo divino
Um texto de São Paulo projeta uma luz suave e forte sobre o argumento precedente.
O Apóstolo escreve: Cristo, vindo como Pontífice dos bens futuros, (passou) pelo meio de um Tabernáculo mais excelente e perfeito, não feito por mão dos homens, isto é, não desta criação (Heb. 9, 11).
Analisemos esta passagem e nela encontraremos, bela e resplandecente, a revelação implícita da Imaculada Conceição.
O Apóstolo compara aqui o Pontífice da lei antiga com o da lei nova, mostrando que o primeiro entrava no Tabernáculo, no santo dos santos, uma vez por ano, para oferecer o sangue dos holocaustos, enquanto Jesus Cristo, o Pontífice da nova lei, passa por um primeiro Tabernáculo, não feito pela mão dos homens, para apresentar-se no segundo, pela efusão de seu próprio sangue (per proprium sanguinem, intravit semel in sancto).
Tal é a oposição que o Apóstolo estabelece entre os dois Pontífices.
O Pontífice da lei antiga era homem como qualquer um; pecador como era, entrava no primeiro Tabernáculo, onde todos entravam (o santo) e só entrava uma vez por ano no segundo Tabernáculo (sancta sanctorum).
Pode-se deste modo traduzir a passagem de São Paulo: Cristo passou pelo meio de um Tabernáculo mais excelente e perfeito, não feito pela mão dos homens e não sendo desta criação.
E este Tabernáculo, adornado de tais qualidades, só pode ser o seio Imaculado de Maria.
Este argumento refere-se diretamente à santa humanidade do Salvador e indiretamente à santidade original de Maria.
Se houvesse qualquer mancha na formação de Maria, haveria igualmente na formação de Jesus, pois o filho é formado pelo sangue da mãe.
Mas S. Paulo faz notar que este Tabernáculo, pelo qual passou o Cristo, não era feito pela mão dos homens; Jesus Cristo formou-o com sua própria mão. Deus formou a sua própria mãe.
Por este título, Maria é duplamente imaculada, como obra feita imediatamente por Deus, e como sendo a sua mãe, da qual ele mesmo devia receber a sua humanidade.
Aos protestantes que consideram exagerado e excessivo este privilégio da Imaculada Conceição pode-se responder que Aquele que faz o maior deve fazer o menor, pois o todo inclui as partes.
Deus elevou-a, pela maternidade divina, a uma honra infinita
[3], muito acima dos anjos, enquanto que pela Imaculada Conceição elevou-a apenas acima dos homens pecadores.
Qual é, de fato, o anjo que pode dizer a Deus: Tu és o meu Filho?
E elevando, deste modo, Maria acima de todos os anjos, como Deus não a elevaria acima da natureza humana decaída?
Se o não fizesse, seria uma contradição nas obras de Deus. Ele faria o maior e recusaria o menor... Ele elevaria uma criatura acima dos anjos e a lançaria ao mesmo tempo no meio da raça pecadora dos homens?
Seria como se um Monarca poderoso elevasse ao trono e escolhesse como rainha uma pobre filha do povo, e a tomasse ao mesmo tempo como escrava, para servir à sua mesa.
Seria ridículo... indigno de um Rei; quanto mais indigno seria de Deus!
Não, não... É impossível!
Se Deus pode preservar Maria do pecado original, e quis preservá-la... Ele o fez!
Ora, negar que o pode fazer, seria tão absurdo quão blasfematório contra o seu poder.
Dizer que não o quis fazer, seria ferir a sua bondade e o seu amor filial.
Enfim, dizer que nem o pôde, nem o quis fazer, quando pôde e quis fazer infinitamente mais, fazendo-a sua mãe, seria excluir da noção de Deus toda sabedoria, toda razão, como toda bondade e todo poder.
A palavra de São Paulo é pois uma revelação implícita do grande dogma da Imaculada Conceição!
O próprio Jesus Cristo fez o seu Tabernáculo, e o fez, mais excelente e perfeito, não sendo desta criação, mas de uma criação à parte, única, que é a de um Tabernáculo destinado ao próprio Filho de Deus.
Ora, um Tabernáculo, feito imediatamente pela mão de Deus e para Deus, devia ter toda a beleza, toda a pureza que o próprio Deus pode outorgar a uma criatura.
E esta pureza perfeita, ideal, chama-se a Imaculada Conceição!
III. O mais antigo dogma
Os amigos protestantes taxam de novidade o dogma da Imaculada Conceição.
É falta de reflexão.
É o mais antigo dos dogmas revelados ao mundo.
Ele é mais antigo que a Igreja; mais antigo que o Evangelho. Ele era com Jesus Cristo antes que Abraão existisse: É por ele que começam as Sagradas Escrituras.
A Imaculada Conceição de Maria é de novo implicitamente revelada neste oráculo de Deus que traz o capítulo III do Gênesis, e que ele dirigiu ao demônio, depois da queda de nossos primeiros pais:
Inimicitias ponam inter te et mulierem, et semen tuum et semen illius: ipsa conteret caput tuum (Gn. 3, 15).
A tradução literal é: Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua semente e a semente dela: ela te esmagará a cabeça.
Eu pergunto aos protestantes inteligentes: é possível limitar este texto a Eva?
É impossível! Se o texto se limitasse a Eva, Deus deveria ter dito: Porei inimizade entre ti e Eva; ela te esmagará a cabeça.
Dizendo que é a mulher que deve esmagar a cabeça de Satanás, e ampliando esta palavra dizendo que é a sua semente, vê-se imediatamente que Eva é aqui apenas a representação de uma mulher.
E qual é esta mulher?
É a mesma a quem o Salvador chama sempre no Evangelho “Mulher”, em vez de: minha Mãe.
- Mulher, eis aí o teu filho (Jo 19, 26).
- Mulher, que nos importa a nós? (Jo 2, 4).
Tal é a mulher predita no Paraíso e realizando a profecia pela sua conceição imaculada, esmagando a cabeça da serpente.
Esmagar a cabeça da serpente é escapar à sua dominação, é ficar isenta de sua mordedura e dominá-la pela santidade.
Ora, tudo isso é claramente o que constitui o privilégio da Imaculada Conceição.
Não se limitando tal profecia a Eva, os protestantes devem encontrar qualquer outra mulher que tenha este privilégio, pois deve existir em qualquer criatura. Se não seria uma profecia sem objeto, o que não se pode admitir.
E qual será esta mulher esmagando a cabeça da serpente? Será Raquel, Rebeca, Sara, Débora, Judith, Abigail, a Sulamita, Esther, Noemi, Respha, a mãe dos Macabeus, umas tantas figuras da Mãe de Deus?
Ou ainda, no novo Testamento, será Maria Madalena, ou qualquer outra das santas mulheres?
Caros protestantes, reflitam um instante e compreenderão que a única mulher, cheia de graça, bendita entre todas as mulheres, é Maria, a Virgem Santa, a Mãe de Deus.
Sendo ela a escolhida, a mulher profetizada, é pois ela que, sendo da semente da primeira mulher Eva, escapou à dominação do demônio, ficando isenta de sua mordedura, esmagando a cabeça da serpente, numa palavra: é Imaculada em sua Conceição.
Querendo ou não querendo, pelo texto da Bíblia como pelo bom senso, tem que chegar a Maria Santíssima e reconhecer que é ela que foi profetizada no texto citado.
Deste modo é de novo uma revelação implícita da Imaculada Conceição.
IV. A raça da mulher
Não paremos aqui, mas estudemos cada frase desta passagem profética da glória de Maria.
Provado que tal texto se aplica à Mãe de Jesus, analisemos os seus diversos aspectos para melhor destacar o seu objeto central: a Virgem Maria.
Porei inimizade entre ti e a mulher.
Notemos bem que não é simplesmente entre Eva e a serpente, mas sim entre a mulher bendita e a semente da serpente.
Nada pode haver de mais formal!
Pelo pecado original, Eva, Adão e toda a sua posteridade estão sujeitos ao demônio.
Não há simplesmente guerra, mas sim domínio de Satanás sobre a raça humana.
E eis que Deus, anunciando a mulher – a Virgem Maria, cuja semente é o Cristo, diz: porei inimizade entre ti e a mulher.
Que quer dizer isto?
É um modo enérgico de dizer que Satanás não estenderá o seu domínio sobre esta mulher... que entre ambos haverá uma oposição radical, uma inimizade de raça.
É a razão por que Deus completa a ideia, dizendo: entre a tua posteridade e a posteridade dela (Gn 3, 15).
Resulta necessariamente desta adição que as inimizades que devem existir entre a serpente e a mulher, Maria, são as mesmas que existirão entre a serpente e a posteridade da mulher.
Esta semente é Jesus Cristo.
Deve existir, pois, entre a serpente e Maria a mesma inimizade que existe entre a mesma serpente e Jesus Cristo.
Ora, tal inimizade fundamental entre a serpente e Jesus Cristo é a ausência completa em Jesus de todo e qualquer pecado, sendo o pecado a figura e representação de Satanás.
Logo esta mesma ausência total de todo e qualquer pecado deve existir em Maria Santíssima.
Ela deverá ser concebida no mesmo estado em que ela o conceberá: na inimizade do mal, ou na Imaculada Conceição.
Podemos e devemos aplicar a ambos: à mulher e à sua posteridade, à Maria e a Jesus, o fim da profecia: Ela te esmagará a cabeça, e tu armarás traições ao seu calcanhar (Gn 3, 15).
Maria esmagou a cabeça da serpente pela sua Imaculada Conceição, como já ficou dito, embora o demônio armasse traições a seu calcanhar.
Tais traições são os sofrimentos físicos e morais, as perseguições, as barbaridades, os crimes, o aniquilamento de Jesus durante a sua Paixão e morte, que seriam para qualquer outra pessoa que Maria, tentações de desespero, de desconfiança, ou pelo menos de temor, de dúvida, como o foram para os Apóstolos.
O demônio procurou deste modo abater a coragem, diminuir a confiança, resfriar o amor da Virgem Santíssima, sem nada alcançar, pois a fé de Maria, a sua esperança e o seu amor estavam muito acima das vacilações humanas.
O demônio ignorava o segredo da Imaculada Conceição; por isso tentava-a, torturava-a, sob o peso de suas perseguições, mas em vão: só pôde alcançar o calcanhar, isto é, o corpo da Virgem Santa, continuando a sua alma elevada na região da fé pura e do amor divino.
Armou traições, mas foi esmagado sob o peso deste calcanhar virginal, que tinha o peso da santidade de seu divino Filho.
Eis o sentido claro desta bela profecia.
Não é preciso vergar ou adaptar o texto sagrado à tese aqui defendida; é o seu sentido óbvio, sempre aceito na Igreja e defendido por todos os séculos.
Bela e sublime revelação implícita da Imaculada Conceição.
V. A grande discussão
A bela profecia que acabamos de analisar, pela sua extensão gloriosa em honra da Mãe de Jesus, devia necessariamente ser contestada e discutida pelos protestantes, atribuindo-lhe uma significação diferente da interpretação católica.
É o que aconteceu.
Nas diversas versões da Bíblia encontraram uma variante.
O texto da Vulgata e três versões gregas dizem:
A mulher te esmagará a cabeça (Ipsa) auté.
As versões hebraicas dizem:
A semente da mulher te esmagará a cabeça (Ipsum).
Outras versões gregas dizem:
O Filho (o Cristo) te esmagará a cabeça (ipse) autos.
Uma versão egípcia diz:
Eles (Jesus e Maria) te esmagarão a cabeça (ipsi).
Eis o precioso achado para os protestantes poderem protestar...
Haja discussão! Haja objeções! Para excluir a Virgem Santíssima desta primeira página Bíblica.
E no meio da balbúrdia os amigos protestantes não notaram que tal mudança de pronome ipsa, ipse, ipsum, ipsi, tem apenas um valor secundário, que não muda em nada o valor probativo do texto nem a extensão de sua significação.
Qualquer que seja a versão adotada, o texto prova sempre o triunfo da mulher, que é a Virgem Imaculada.
O essencial é que haja uma eterna inimizade entre a mulher e o demônio. Porei inimizade entre ti e a mulher.
O texto contestado é o seguinte:
Deve-se ler:
Ipsa, ipsum, ipse conteret caput tuum ou: Ipsi conterent caput tuum.
Ipsa, é claramente a Virgem Santíssima.
Ipse, é Jesus Cristo.
Ipsum, é a semente, ou Jesus Cristo.
Ipsi, é Jesus e Maria.
A Igreja nunca pretendeu outorgar diretamente à Virgem o privilégio de esmagar a cabeça da serpente, exclusivamente por si, mas unida a seu Filho, pela ação de seu Filho, como Mãe de Deus.
Pode-se pois adotar qualquer uma destas versões: ipsa, ipse, ipsum, ipsi, dizendo que é Maria Santíssima ou Jesus Cristo, ou ambos, ou a semente da mulher que esmagará a cabeça da serpente.
Quem a esmagará é Deus-Homem, pois Jesus Cristo é Deus e homem.
Como tal, Ele é necessariamente unido à sua Mãe; e esta última, junta com Ele, esmaga a cabeça da serpente.
Jesus Cristo o faz diretamente em qualquer hipótese.
Maria Santíssima o faz indiretamente, ficando inseparavelmente associada a esta obra de esmagamento.
Adotando com a Vulgata a versão de ipsa, dizendo que é Maria Santíssima que esmagou a cabeça da serpente, não é ela só, mas unida ao Filho, pelo Filho, como sendo Mãe de Deus, que o faz.
É Jesus, pela sua Encarnação e Redenção, que destruiu o reino de Satanás, esmagando-lhe a cabeça pelo pé virginal de sua Mãe.
Isto é tão lógico e tão simples que nas versões egípcias a mulher e o filho são unidos num único pronome: ipsi: eles te esmagarão a cabeça.
E tal expressão é ainda a mais clara e a mais lógica, expressiva, indicando deste modo, num termo único, o
princípio e o
instrumento, o filho e a mãe
[4].
Eis a tremenda discussão levantada pelos protestantes, com o intuito de excluírem deste texto a ação cooperadora da Virgem Santíssima e de diminuírem uma citação que exprime e revela implicitamente a sua imaculada conceição.
Tal discussão, como se vê, em nada prejudica a glória de Maria Santíssima, de modo que, através das discussões humanas, a palavra divina continua resplandecente, fulminante, mostrando-nos, desde os albores da humanidade, a figura luminosa, simbólica, de esperança e de misericórdia da Virgem Imaculada.
Tal é, aliás, a opinião do próprio São Jerônimo que escolheu entre as quatro versões a dos Setenta, reproduzida nas outras hebraicas que trazem ipsa, o que é a mais clara senão pela exatidão gramatical, mas pelo sentido espiritual.
Ele mesmo dá a razão desta profecia:
“Não pode ser outra a semente da mulher”, escreve ele, “senão Aquele que o Apóstolo diz ter sido feito da mulher, isto é, Jesus Cristo (factum ex muliere) (Gl 4, 4). O Cristo é verdadeiramente a semente da mulher, havendo Ele nascido sem a cooperação do homem”.
VI. Conclusão
Como acabamos de ver, o sublime dogma da Imaculada Conceição não está explicitamente revelado no Antigo Testamento, não havendo razão para que Deus manifestasse aberta e publicamente uma verdade, muito acima da compreensão dos Judeus.
Deus agiu do mesmo modo com a revelação do mistério da Santíssima Trindade. Revelou-o implicitamente, em termos e comparações veladas, que não deixam aparecer logo o mistério, mas permitem aos séculos vindouros, na hora propícia, deduzirem estas verdades, como conclusão de outras verdades explicitamente reveladas.
É deste modo que agiu com a Imaculada Conceição. Há indícios, há indicações, porém de tal modo confusas que, só depois de bem compreendidas outras verdades, é possível deduzir delas a Imaculada Conceição.
O que domina no Antigo Testamento é a Virgindade de Maria. Isto é claro e positivo:
O Senhor vos dará um sinal, disse Isaías a Acaz, Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um filho, e chamarão o seu nome: Emanuel, isto é: Deus conosco (Is 7, 14).
O Salvador deverá nascer de uma Virgem: é verdade básica, que deve servir de princípio às outras verdades.
Mas Deus reservou a hora e o modo da proclamação de outras verdades incluídas nesta primeira.
Um pensamento sublime, embora ainda oculto, domina a queda do primeiro homem: é a reparação – É o Salvador prometido e a ação reparadora deste Salvador.
É um paralelo que Deus estabelece como que timidamente entre Adão e o Cristo, e no mesmo tempo entre Eva e Maria.
São Paulo fornece a base deste paralelo, dizendo: O primeiro homem, vindo da terra, era terrestre, o segundo, vindo do céu, é celeste (1Cor 15, 47).
Ao lado do primeiro Adão está a mulher, a quem Adão deu o nome de Eva, porque devia ser a Mãe dos viventes (Gn 3, 20).
Ao lado do segundo Adão, de Jesus Cristo, está outra mulher, Maria, de quem Eva era a figura, que devia ser a Mãe dos viventes, em Cristo, pela graça.
Eva Evae contraria, diz São João Crisóstomo.
Terminemos este capítulo pela comparação entre Eva e Maria, pois deste paralelismo sobressairá admiravelmente a Conceição Imaculada de Maria.
Eva é figura de Maria, e esta deve ter pelo menos todos os dons e privilégios da primeira mãe dos viventes.
Eva foi diretamente criada por Deus, no estado de inocência perfeita, pura, e adornada dos dons da natureza e da graça, em outros termos, saindo diretamente das mãos de Deus, ela foi imaculada.
É preciso que Maria, a restauradora da ordem perturbada por Eva, seja, pois, também Imaculada.
É o único ponto de igualdade; em todos os outros pontos Maria é contrária a Eva.
Eva nos trouxe a morte: Maria nos traz a vida.
O fruto de Eva foi mortal: o fruto de Maria é vivificante.
Eva foi causa de lágrimas: Maria é causa de alegria.
Eva separou Deus do homem: Maria os une.
Eva nos atraiu a maldição: Maria nos obtém a benção divina.
Eva nos impôs o julgo do mal: Maria nos eleva ao bem.
Eva suscitou o ódio: Maria faz reinar a paz.
Eva nos lançou nos laços da morte: Maria no seio da vida.
Eva foi a causa da queda: Maria é a causa do levantamento.
E assim por diante.
Os Santos Padres fizeram inúmeras aproximações de Eva e de Maria, para salientar seu papel regenerador, e mostrar que, por ela, somos elevados mais alto do que nos rebaixou a falta de Eva.
Eva inocente foi o símbolo de Maria.
Eva decaída é a oposição de Maria.
Formada pelas mãos de Deus, Eva era imaculada antes da queda.
Maria, devendo reparar esta queda, devia estar no mesmo estado que Eva antes desta queda, devia ser
imaculada[5].
Como vimos a palavra divina, no texto profético, é clara, mostrando-nos a Mulher bendita esmagando a cabeça da serpente, como associada ao Redentor, cuja vitória sobre o mal devia ser partilhada pela sua própria Mãe.
Maria é Imaculada, porque esta prerrogativa satisfaz às exigências do papel que Maria deve exercer, como Mãe de Deus.
Tudo o exige, tudo o impõe, e o próprio Deus, para preparar o espírito dos homens, deixa entrever, através das páginas sagradas, a existência deste privilégio, que veremos resplandecer clara e positivamente, embora ainda meio velado, no Novo Testamento.
[1] Extraído da obra
A Mulher Bendita Diante dos Ataques Protestantes, do Pe. Júlio Maria de Lombaerde.
[2] Voluit itaque esse Virginem de qua immaculatus procederet, omnium maculas purgaturus (S. Missus est, Hom. 2).
[3] Beata Virgo ex hoc, quod est Mater Dei, habet quamdam infinitatem, ex bono infinito quod est Deus (Thom. I, p. q. 25 a 6).
[4] A versão:
ipsa é mais antiga que S. Jerônimo, e foram os Setenta os primeiros que adotaram este pronome, em vez do neutro:
ipsum. A antiga itálica, tradução verbal do grego, diz
ipse-autos.
Em hebraico o pronome refere-se a raça e não à mulher, e o verbo conteret está no masculino, tendo por sujeito a palavra masculina zéra (raça) do mesmo modo que o complemento ejus de insidiaberis está no masculino, em hebraico; ele te esmagará, e não ela – é: tu lhe esmagarás a ele.
Examinando pois o texto gramaticalmente, parece ser preferível o pronome ipse; é por causa do grande valor dos setenta e [d]a erudição de S. Jerônimo, adotando ipsa, que prevaleceu o texto autêntico da Igreja, que conservou este pronome.
Mesmo admitindo que fosse um erro do copista, o certo é que tal versão é conforme ao espírito do texto.
Podem representar-se justamente Maria esmagando debaixo de seus pés o dragão infernal, pois ela o faz como Mãe de Deus, pelo poder de seu filho.
[5] Eva contraria Evae: Eva enim i cit filios suos tnimicos Deis; Maria nos pacificavit Deo. Ilia mater cunctorum viventium, spiritualis interfectrix; haec cunctorum Mater, spiritualis vivificatri. Illa maledicta multiplicatur a Deo: haec benedicta in Matris útero (S. Antoninus in sum. Parte. 4 t. 51 c. 13).