terça-feira, 26 de abril de 2022

DA ORAÇÃO DE SANTO ANTÔNIO QUE RESTAUROU UM COPO QUEBRADO E ENCHEU UMA VASILHA DE VINHO

 



Ao tempo em que era Custódio de Limoges, numa viagem que fez de Limoges para a Itália, sucedeu-lhe atravessar a província da Provença. Tendo chegado a um lugarejo já depois da hora da refeição, uma mulher piedosa e pobre, sabendo que ele e o companheiro estavam em jejum, compadeceu-se da sua situação de pobreza e de fome e levou-os para sua casa para lhes dar de comer.

A mulher, rivalizando com Marta em os servir, apresentou na mesa pão e vinho, tendo pedido emprestado a uma vizinha um copo de vidro.

Mas Deus, querendo tirar proveito da provação, permitiu que a mulher, ao tirar o vinho da vasilha, deixasse descuidadamente a torneira aberta e o vinho derramou-se todo pelo pavimento da despensa. Por sua vez, o companheiro de António, ao receber desajeitadamente o copo de vidro, bateu com ele na mesa de tal sorte que a copa intacta foi parar a um lado e o pé a outro.

Pelo fim da refeição, a mulher, querendo oferecer vinho novo aos frades, ao entrar na despensa, viu o vinho entornado pelo pavimento. Voltou para trás a lamentar-se, triste, desolada e perturbada; e, enquanto informava que o vinho se tinha derramado por causa da sua falta de cuidado, o bem-aventurado António, compadecendo-se da infelicidade da mulher, pôs a cabeça entre as mãos, por cima da mesa, meditando naquela palavra do Apóstolo: Orarei com o espírito e com o entendimento[1].

Enquanto a mulher olhava para ele a rezar nesta posição e estava na expectativa do que ia acontecer, eis que subitamente — coisa admirável de dizer! — a copa do copo de vidro que estava dum lado da mesa se sobrepôs por si mesma ao pé, que estava do outro. À vista disto, a mulher ficou cheia de espanto, pegou rapidamente no copo e, agitando-o fortemente, apercebeu-se de que ele estava intacto por virtude da oração.

Crendo que a força que tinha reparado o copo poderia recuperar o vinho entornado, a passo ligeiro dirige-se para a despensa; a vasilha, que antes a custo estaria meia, encontrou-a agora tão cheia que o vinho saía pelo cimo da vasilha a borbulhar, como novo. De facto, era novo, porque Deus o criara de novo para poupar ao humilde Antônio a vergonha e o embaraço e para, em tão estupendo milagre, se tornar manifesto o poder da oração.

Mas, apenas o Santo sentiu que fora ouvido, logo deixou a localidade, fugindo, como discípulo da humildade, de lugares onde pudesse ser honrado e louvado pelo povo.

Extraído da Legenda Rigaldina, capítulo V.


Santo Antônio de Pádua, rogai por nós!



[1] 1 Cor 14, 15.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

BULA DA CANONIZAÇÃO

 


«Cum dicat Dominus»

de 11 de Junho de 1232

 

Gregório, Bispo

Servo dos Servos de Deus

 

aos veneráveis irmãos Arcebispos e Bispos e aos diletos filhos Abades, Priores e outros Prelados das Igrejas, que lerão a presente carta, saúde e bênção apostólica.

O Senhor, ao dizer pelo Profeta: Entregar-vos-ei a todas as nações para louvor, glória e honra[1] e, por Si próprio ao prometer que os justos brilharão como o sol na presença de Deus[2], quer significar que é piedoso e justo que louvemos e glorifiquemos na terra com a nossa veneração aqueles a quem Deus coroa e honra no céu com o mérito da santidade. Aquele que é eternamente digno de louvor e glória[3] torna-se mais louvado e glorificado nos Seus santos.

De fato, Deus, para manifestar de forma admirável o poder da Sua força e realizar com misericórdia a causa da nossa salvação, coroa sempre no céu os Seus fiéis e, com frequência, também os honra neste mundo, realizando sinais e prodígios que os tornam memoráveis. Por tais sinais e prodígios é confundida a maldade herética e confirmada a fé católica. Os fiéis, sacudida a tibieza espiritual, despertam-se ao cumprimento das boas obras; os hereges, removida a caligem das trevas em que se encontram envolvidos, abandonam os caminhos da perdição e retomam o caminho da salvação; os judeus e os pagãos, conhecida a verdadeira luz, correm ao encontro de Cristo, luz, caminho, verdade e vida[4].

Por isso, caríssimos irmãos, damos graças ao despenseiro de todas as graças, se não tantas quantas devemos, pelo menos quantas de que somos capazes. É que em nossos dias, para confirmação da fé católica e confusão da maldade herética, Deus visivelmente renova os sinais e emprega com poder as maravilhas, fazendo brilhar por meio de milagres aqueles que robusteceram a fé católica com o ardor das suas convicções, com a eloquência da sua palavra e o exemplo da sua virtude.

No número destes acha-se o bem-aventurado Antônio, da Ordem dos Frades Menores, de santa memória. Enquanto viveu no mundo, possuiu grandes méritos; agora, vivendo no céu, brilha com muitos milagres, que demonstram de forma evidente a sua santidade.

Há tempos, o nosso venerável irmão o Bispo de Pádua e os nossos amados filhos o Presidente e os vereadores do Município, mediante legados seus e cartas cheias de humildade, suplicaram-nos que mandássemos recolher testemunhos dos milagres do Santo, a quem o Senhor concedeu tamanha glória, ao ponto de lhe dar a ciência da sua primeira estola imortal e evidente experiência da segunda, concedendo que no seu túmulo se realizassem grandes milagres. Assim, ele é digno de que sejam invocados os seus sufrágios entre os demais santos.

Embora para algum santo estar junto de Deus, na Igreja triunfante, baste só a perseverança final, conforme o que se lê: sê fiel até à morte, e dar-te-ei a coroa da vida[5], todavia, para alguém ser considerado santo entre os homens, na Igreja militante, são necessários dois requisitos: a santidade da vida e a verdade dos sinais, ou seja, méritos e milagres. É necessário que estes dois requisitos se unam e se completem reciprocamente, dado que não bastam méritos sem milagres, nem milagres sem méritos para dar aos homens o testemunho da santidade. Mas quando genuínos méritos precedem e evidentes milagres sucedem, então possuímos um indício seguro de santidade, que nos levam à veneração daquele que Deus mostra ser digno de ser venerado por méritos precedentes e milagres subsequentes. Estes dois fatos deduzem-se facilmente a partir das palavras do Evangelista: eles, porém, partiram e pregaram por toda a parte, cooperando com eles o Senhor, o qual confirmava a sua doutrina com os milagres que se lhe seguiam[6].

Por isso, resolvemos encarregar de recolher os testemunhos dos milagres do mesmo santo o citado Bispo e os diletos filhos Frei Jordano, de São Bento, e a Frei João, de Santo Agostinho, Priores dos dois conventos dos Frades Pregadores de Pádua.

Há pouco tempo, porém, tanto pelo relatório dos citados Bispo e Priores, como pelos depoimentos das testemunhas recebidos sobre o assunto, certificámo-nos das virtudes de Antônio e dos seus milagres insignes. E tendo Nós próprio, um dia, apreciado a sua santidade de vida e as maravilhas do seu ministério, pois viveu edificantemente algum tempo conosco, depois de instantes e renovadas súplicas dos citados Bispo, Presidente do Município e seus edis, mediante delegados seus e cartas, com o objetivo de inscrevermos no catálogo dos santos o bem-aventurado Antônio, a fim de que, por meio da nossa autoridade apostólica, como exige o ordenamento eclesiástico, fosse conferido na terra a digna honra a quem é honrado no céu, como se depreende dos sinais claros e argumentos evidentes.

Ouvido o conselho dos nossos irmãos (Cardeais) e de todos os Prelados existentes na Sé Apostólica, chegámos à conclusão de que deveríamos inscrever no catálogo dos Santos aquele mesmo que depois da morte corporal mereceu estar com Cristo no céu. Se permitíssemos privar da devoção humana por mais tempo aquele que foi glorificado pelo Senhor, pareceria que de algum modo lhe tirávamos a honra e a glória que lhe eram devidas.

Portanto, segundo a verdade evangélica, ninguém deve acender o candeeiro e pô-lo debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro, a fim de que todos os que estão em casa vejam a luz[7]. Ora, o candeeiro do citado Santo de tal modo brilhou até agora neste mundo, que, por graça de Deus, já mereceu ser colocado, não debaixo do alqueire, mas sobre o candelabro.

Por isso, Nós pedimos a todos, ardentemente vos admoestamos e exortamos, mandando por esta Carta Apostólica que desperteis salutarmente a devoção dos fiéis a venerá-lo. Vós, portanto, celebrareis todos os anos no dia 13 de Junho a sua festa e mandareis que ela seja solenemente celebrada, para que o Senhor, movido pela sua intercessão, nos conceda a graça no presente e a glória no futuro.

Nós, porém, desejando que o túmulo de tão grande Confessor, que ilustra toda a Igreja com os fulgores dos milagres, seja visitado com as devidas honras, a todos aqueles que verdadeiramente arrependidos e confessados e com a devida reverência o visitarem todos os anos na sua festa e durante a oitava, confiados na misericórdia de Deus e na autoridade dos Bem-aventurados Apóstolos São Pedro e São Paulo, concedemos benevolamente um ano de indulgência da penitência que lhes tiver sido imposta.

 

Dada em Espoleto, a 11 [uma das datas da versão oficial da Bula] de Junho de 1232, ano sexto do nosso Pontificado.



[1] Sof 3, 20.

[2] Mt 13, 43.

[3] Dn 3, 45.

[4] Jo 14, 6.

[5] Ap 2, 10.

[6] Mc 16, 20.

[7] Mt 5, 15.

terça-feira, 19 de abril de 2022

BILOCAÇÃO DE SANTO ANTÔNIO PARA CANTAR O OFÍCIO

 




Pelo fato de o bem-aventurado Antônio se exercitar nos serviços humildes, o Senhor realizou prodígios a favor do seu humilde servo.

Enquanto era Custódio dos frades na Custódia de Limoges, aconteceu, à meia noite de Quinta-feira Santa, encontrar-se na cidade de Limoges, na igreja de S. Pedro de Quadrívio. Terminado o ofício de Matinas, que aí costumam ser celebradas à meia noite, começou a semear a semente da Palavra da Vida ao povo aí reunido. À mesma hora, no seu convento, os Frades Menores cantavam ao Senhor os louvores do ofício de Matinas; o Custódio, S. Antônio, tinha sido escalado para cantar uma lição no ofício.

O homem de Deus pregava àquela hora na igreja de S. Pedro, que está muito distante do convento dos frades. Prosseguindo o ofício de Matinas e chegando os frades à leitura que estava destinada ao bem-aventurado Antônio, este apareceu subitamente no meio do coro, começou a sua lição e cantou-a até ao fim.

Ficaram estupefatos todos os frades presentes, porque sabiam que ele se encontrava a pregar na cidade. O poder de Deus fez que ele à mesma hora estivesse com os frades no coro, onde fez uma leitura, e na igreja com o povo, a quem pregou a Palavra da Vida. Mas, enquanto fez a leitura no coro, permaneceu silencioso na igreja perante o povo.

Quem tornou o bem-aventurado Ambrósio, então a residir em Milão, presente em Tours nas exéquias de S. Martinho, quis que o bem-aventurado Antônio estivesse presente em dois lugares, para que com a sua ausência não houvesse perturbação no ofício divino. Quem se tinha rebaixado aos mais humildes serviços merecia que Deus o exaltasse nos santos ofícios.


Extraído da Legenda Rigaldina, capítulo V.

Santo Antônio de Pádua, rogai por nós!

DE UM MENINO MORTO A QUEM SANTO ANTÔNIO MIRACULOSAMENTE RESSUSCITOU

 




Também de outra vez tinha chegado Santo Antônio a um lugar para pregar, e uma devota mulherzinha deixou o filho no berço e foi ouvir o sermão.

Ora, quando depois voltou a casa, foi dar com o filho morto, deitadinho de costas no berço.

Toda aflita e apoquentada correu numa pressa a Santo Antônio a rogar-lhe com muitas lágrimas que lhe ressuscitasse o seu menino.

E o Santo, doendo-se dela, por duas ou três vezes lhe disse:

— Anda, vai, que Deus te fará bem.

E ela, fiada nas palavras do Santo, voltou para casa cheia de esperança; e ao filho que deixara morto, encontrou-o vivo e a brincar com umas pedrinhas que antes nunca tivera.

Extraído do Livro dos Milagres, Capítulo XIX.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

SOBRE A ADORAÇÃO DA SANTA CRUZ

 



Aproveitamos a ocasião da Sexta-feira da Paixão para publicar a já prometida questão da Suma Teológica que trata da adoração da Santa Cruz. Ei-la.

Observação: para os que não possuem trato com as questões disputadas, consulte a seguinte publicação para entender a sua estrutura [aqui].



QUESTÃO 25


ARTIGO 4


Se se deve adorar a cruz de Cristo com adoração de latria.

QUANTO AO QUARTO, ASSIM SE PROCEDE: parece que não se deve adorar a cruz de Cristo com adoração de latria.

1. Com efeito, nenhum bom filho venera o que foi a afronta do seu pai, por exemplo, o látego com que foi açoitado ou o madeiro no qual foi pendurado. Pelo contrário, detesta tudo isso. Ora, Cristo sofreu no madeiro da cruz a morte mais ignominiosa, segundo o livro da Sabedoria [2, 20]: "Condenamo-lo à morte mais vergonhosa". Não devemos, portanto, venerar a cruz, mas ter horror dela.

2. ALÉM DISSO, a humanidade de Cristo é adorada com adoração de latria por estar unida à pessoa do Filho de Deus; o que não se pode dizer da cruz. Portanto, a cruz de Cristo não deve ser adorada com adoração de latria.

3. ADEMAIS, a cruz de Cristo foi instrumento de sua paixão e morte, como o foram também os pregos, a coroa e a lança; a estas coisas, contudo, não tributamos o culto de latria. Portanto, parece que a cruz de Cristo não deve ser adorada com adoração de latria.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, prestamos adoração de latria àquilo no qual depositamos esperança de salvação. Ora, nós depositamos tal esperança na cruz de Cristo, pois a Igreja canta: "Salve, ó cruz, única esperança! Neste tempo da paixão, aumenta a justiça aos bons e aos réus concede o perdão". Logo, a cruz de Cristo deve ser adorada com adoração de latria.

RESPONDO. Como acima foi dito, a honra ou a veneração são devidas só à criatura racional; e só em razão da natureza racional pode ser honrada ou venerada uma criatura insensível. Isto pode acontecer de duas maneiras: ou porque representa a natureza racional, ou porque está unida a ela de alguma maneira. Da primeira forma costumam os homens venerar a imagem do rei; da segunda maneira se venera a sua roupa. Mas em ambos os casos os homens veneram esses objetos com a mesma veneração com que veneram o rei. Por conseguinte, se falamos da própria cruz na qual Cristo foi crucificado, deve ser venerada pelos mesmos dois motivos: primeiro, porque representa para nós a figura de Cristo estendido nela; e em segundo lugar, porque foi tocada pelos membros de Cristo e inundada com o seu sangue. Por ambos os motivos deve ser adorada com a mesma adoração de latria que tributamos a Cristo. Por isso também nos dirigimos à cruz e a invocamos, como ao próprio crucificado.

Mas se falamos da imagem da cruz de Cristo, feita de qualquer outra matéria, por exemplo, de pedra, madeira, prata ou ouro, a cruz é venerada só como imagem de Cristo, com uma adoração de latria, como foi exposto acima.

QUANTO AO 1°, portanto, deve-se dizer que segundo a opinião e a intenção dos pagãos, a cruz de Cristo é considerada como um opróbrio de Cristo; contudo, olhando o efeito da nossa salvação, o que se considera é o seu poder divino, pelo qual triunfou dos inimigos, segundo a Carta aos Colossenses [2, 14-15]. "Ele o cancelou, pregando-o na cruz; e despojando os principados e as potestades, os expôs confiadamente, triunfando abertamente sobre eles em si mesmo". Por isso diz ainda o Apóstolo na primeira Carta aos Coríntios [1, 18]: "A palavra da cruz é estultície para os que se perdem; mas é poder de Deus para os que se salvam, isto é, para nós".

QUANTO AO 2°, deve-se dizer que ainda que a cruz de Cristo não tenha estado unida pessoalmente ao Verbo de Deus, esteve unida a ele, de outra forma: por representação e por contato. E só por esta razão é reverenciada.

QUANTO AO 3°, deve-se dizer que quanto ao argumento do contato dos membros de Cristo, adoramos não só a cruz, mas tudo aquilo que é de Cristo. Por isso escreve Damasceno: "Deve ser adorado de maneira digna o precioso lenho, santificado pelo contato com o santo corpo e sangue; como também os pregos, as vestes, a lança; e os lugares sagrados em que habitou". Todas estas coisas, contudo, não representam a imagem de Cristo, como a cruz, chamada "sinal do Filho do Homem" que "aparecerá no céu", como diz o Evangelho de Mateus [24, 30]. Por isso o Anjo disse às mulheres [Mc 16, 6]: "Buscais a Jesus Nazareno, o crucificado"; e não disse: "atravessado com a lança", mas "crucificado". Por isso veneramos a imagem da cruz de Cristo, de qualquer matéria, mas não a imagem dos pregos ou de outros objetos com ele relacionados.

 

quarta-feira, 13 de abril de 2022

SOBRE O SACRIFÍCIO DA MISSA E SEU RITO, CONTRA OS LUTERANOS — CARDEAL TOMÁS CAETANO

Publicamos já o estupendo milagre da mula feito por Santo Antônio para convencer um herege da presença real, verdadeira, em corpo, sangue, alma e divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo na Hóstia Sagrada. Mas agora, para trazer algo doutrinário, publicamos a clássica resposta teológica do Cardeal Caetano aos erros de Lutero.  

 


Sobre o Sacrifício da Missa e seu Rito, contra os Luteranos — Cardeal Tomás Caetano

De Missae Sacrificio et Ritu, adversus Lutheranos

 

Ao Papa Clemente VII, Sumo Pontífice.

 

Dividido em seis capítulos.

 

1. Sobre o que é este trabalho.

2. Concordâncias e diferenças entre católicos e luteranos sobre o Sacrifício da Missa.

3. Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada.

4. Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada para a remissão dos pecados.

5. Objeções da Epístola aos Hebreus contra o Sacrifício da Missa.

6. Resposta às objeções.

 

Saudações ao Sumo Pontífice Clemente VII da parte do Cardeal Tomás de Vio Caetano.

Santíssimo Padre: certa vez o senhor me ordenou, como consultor do Núncio, que escrevesse o que deveria ser respondido quanto às objeções do livro sobre a Ceia do Senhor, que afirmava que na Eucaristia está o Corpo e o Sangue do Senhor apenas como no símbolo; Mas desde que eles me ofereceram muito recentemente outro livreto luterano, também sobre a Ceia do Senhor, que afirma que na Eucaristia está o verdadeiro Corpo e Sangue, mas nega o sacrifício da Missa, pareceu-me que também contra todas aquelas igrejas dos cismáticos não era necessária nenhuma ordem para conhecer as razões do erro desta nova heresia, senão que faz parte do meu ofício. Receba, então, para que você possa julgar de acordo com sua opinião, este pequeno trabalho. Com os melhores desejos.

 

Primeiro capítulo — Sobre o que é este trabalho (Quae sit intentio operis)

O único Mestre de todos, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao refutar os Saduceus, apenas argumentou com base nos livros de Moisés, que eram os únicos que eles aceitavam. Assim, ele nos mostrou que contra os hereges não usamos evidências que eles não admitem, mas apenas os testemunhos sagrados que eles não negam.

Por isso, ao escrever sobre o Sacrifício da Missa contra os hereges chamados luteranos que se apoiam unicamente nos testemunhos da Sagrada Escritura, pretendo realizar toda a discussão e explicação com base apenas nas [mesmas] Sagradas Escrituras. Não só para que não se vangloriem de dizer que, ao negar o sacrifício da Missa, se baseiam no sólido fundamento das Sagradas Escrituras, mas também para que aqueles com menos instrução não pensem que o Sacrifício da Missa não se baseia na autoridade das Escrituras, mas apenas na instituição da Igreja; e também para que os luteranos, que erram por ignorância, possam reconsiderar.

Para que todos possam saber claramente a verdade, primeiro se explicará em que concordam e como os luteranos diferem dos católicos; depois, o que se encontra nas Sagradas Escrituras sobre o sacrifício da Missa; e, finalmente, as objeções luteranas serão resolvidas.

 

Segundo capítulo — Concordâncias e diferenças entre católicos e luteranos sobre o Sacrifício da Missa (Convenientia et differentia Lutheranorum cum Catholicis circa sacrificium Missae)

Os luteranos concordam que a Missa pode ser chamada de “sacrifício memorial”, porque o verdadeiro Corpo de Cristo, com seu verdadeiro Sangue, é consagrado, venerado e recebido em memória do sacrifício oferecido na cruz; pois o Senhor diz: “Fazei isto em minha memória” [Lc. 22,19; 1 Cor. 11,24–25].

Mas eles negam duas coisas. A primeira: que o Corpo e o Sangue de Cristo sejam oferecidos a Deus. Portanto, embora eles admitam que o verdadeiro corpo de Cristo está no altar, eles negam que esse verdadeiro Corpo seja oferecido a Deus.

A segunda: que sobre o altar haja uma “hóstia” ou sacrifício para expiação dos pecados [no latim, “hostiam” significa “vítima”], tanto dos vivos como dos mortos.

Ambas as coisas são [aparentemente] baseadas na doutrina da Epístola aos Hebreus, onde claramente parece que, pelos pecados do mundo, toda a oferta do Corpo de Cristo, feita apenas uma vez na Cruz, é suficiente. Daí concluem que, embora o culto ao Corpo de Cristo em memória da sua paixão e morte tenha sido instituído pelo próprio Cristo, a oferta do seu Corpo como hóstia pelo pecado é uma invenção humana, contrária aos textos da Sagrada Escritura.

 

Terceiro capítulo — Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada (Ex institutione Christi Eucharistiam immolari)

Porém, nós, católicos, sabemos que nos textos sagrados está registrada a imolação da Eucaristia. Os evangelistas, certamente (especialmente São Lucas 22, e mais ainda São Paulo, em 1 Coríntios 11), nos dizem que, depois de muitas outras coisas que Nosso Senhor Jesus Cristo fez no jantar, ele lhes ordenou: “Fazei isto em minha memória”. Essas palavras, sendo de Jesus Cristo, devem ser muito bem examinadas, tanto no pronome “isto”, quanto no verbo “fazei”, bem como “em memória de mim”.

¶ Para entender o que é indicado pelo pronome “isto”, deve-se examinar as palavras anteriores. O que precede é que Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o, deu-o e disse: “Tomai e comei, isto é o meu Corpo, que se partiu por vós”, ou segundo São Lucas, “é dado”. E imediatamente acrescentou: “Fazei isto em minha memória”. Como o pronome “isto” não se limita a apontar alguns e não apontar outros das coisas que precedem, segue-se que indica a totalidade daquelas que precedem.

¶ A palavra “Fazei” contém muitos mistérios, pois [Cristo] não diz: “Dizei isto”, mas “Fazei isto”, para apontar que o que é ordenado não consiste em dizer mas em fazer, e que o “dizer” que aqui aparece não é “dizer” algo, mas sim “fazer” algo; para que entendêssemos que as palavras da consagração são palavras que produzem o que significam. Ao adicionar, “em memória de mim”, ele distingue “fazer” de “comemorar”. Ele não disse mais expressamente: “Comemore isso”, mas sim: “Fazei isto em minha memória”. Nosso Senhor Jesus Cristo ordena que “isto”, i.e., tudo o que precede, seja feito em memória dele. O que é ordenado é “faça isto” e que seja feito “para lembrar” Nosso Senhor Jesus Cristo.

¶ Como nas palavras para fazer isso entende-se não apenas “fazer” o Corpo de Cristo [i.e., consagrar a Eucaristia através das palavras e dos atos de consagração], mas também “fazer” o Corpo de Cristo “que é partido ou dado” por nós, é claro que Nosso Senhor Jesus Cristo nos ordenou que “façamos” o seu corpo que por nós se rompe e se dá, como se dissesse: “Que se imola por ti”, porque só se rompe e se dá assim que se rompe e se dá na cruz (isto significa “ele se sacrifica”) por você. Portanto, “fazer” o meu Corpo que se sacrifica por vós é o mesmo que fazer o meu Corpo na medida em que se sacrifica por vós.

¶ Para você entender melhor o que dizemos, note que se Nosso Senhor Jesus Cristo tivesse acrescentado as palavras “que é partido por vós” ou “dado por vós” apenas para expressar a verdade [da presença] de seu Corpo, teria sido suficiente dizer: “que você vê em minha pessoa”, ou algo assim. Mas longe de Nosso Senhor Jesus Cristo uma linguagem imprecisa, porque, negado isso, toda certeza é retirada das palavras. Isso seria se perder em meio a infinitas possibilidades. Ao dizer, então, “que é partido ou dado por você”, significa exatamente: “fazei [consagrai e oferecei] meu Corpo como ele é oferecido por você, e fazei-o mesmo em memória de mim.”.

¶ “Fazer isto” em memória de Cristo é mais do que fazer o Corpo de Cristo consagrando-o, porque é também fazer o Corpo de Cristo que é dado e partido por nós. É também mais do que lembrar de Cristo, porque é fazer, em memória de Cristo, o seu Corpo que por nós é dado e partido. Além disso, dar-se e partir-se por nós é o mesmo que morrer por nós, já que doar-se genericamente significa oferecer-se, e partir-se significa especificamente a forma de se oferecer, ou seja, partindo-se: Ele se entregou a Deus na Cruz através do partir de suas mãos, pés e lado por nós. Portanto, quando Nosso Senhor Jesus Cristo ordenou “Fazei isto em memória de mim”, Ele ordenou: “Fazei isto por meio da imolação em memória de mim”. Fazer “o Corpo de Cristo que se imola” é fazê-lo imolando-o ou por meio da imolação, de modo que seja o Corpo de Cristo enquanto é imolado. Se não fizermos essas duas coisas: 1ª) fazer o Corpo de Cristo “consagrando-o”; e 2ª) “imolando” o que é dado e partido por nós, não fazemos “o Corpo de Cristo na medida em que se imola”. A isso se acrescenta outra coisa, a saber, 3ª) fazê-lo “em memória” de Jesus Cristo.

¶ Perceba, leitor prudente, o que foi feito na Ceia do Senhor para que você entenda como corresponde instituição com instituição, feito com feito e imolação com imolação. A ceia pascal, instituída em memória da partida do Egito, consistia no ato de uma imolação, de modo que tal ceia era a imolação do cordeiro pascal. Da mesma forma, Nosso Senhor Jesus Cristo, ao terminar a imolação do cordeiro pascal, institui em si a nossa nova Páscoa, quando se imola dizendo: “Este é o meu Corpo que vos é dado ou partido”, “Fazei isto em memória de mim”. Como se dissesse verbalmente o que exprimia com o facto da substituição: “Tal como até agora celebrastes a Páscoa em memória da partida do Egito, doravante fazei isto em memória da minha imolação”. Como se ele estivesse falando acerca da mesma substituição da velha Páscoa pela nova, e dissesse: “Aquela Páscoa você fazia imolando-a em um jantar comunitário; agora fazei isto imolando-o [o Cristo Eucarístico] em uma mesa comunitária em minha memória”. Assim, pela mesma substituição da velha Páscoa pela nova, fica implícito que quando ele diz: “Fazei isto em memória de mim”, ele quer dizer que deve ser feito por meio da imolação, visto que na velha Páscoa era feito deste modo.

¶ Que tal é o sentido autêntico deste mandamento é provado pelos fatos relatados de São Paulo em 1 Coríntios 10. São Paulo lista entre as coisas imoladas o pão santo e o cálice do Sangue de Cristo; ele trata nossa mesa como um altar; e coloca aqueles que comem e bebem da mesa do Senhor como aqueles que comem e bebem coisas que foram imoladas. Com isto fica claro, por um lado, que os Apóstolos compreenderam o mandamento de Cristo “Fazei isto em memória de mim” como [uma ordem a] fazer a Eucaristia imolando-a; por outro lado, que na Igreja de Cristo, no tempo dos Apóstolos, a Eucaristia não era apenas um sacramento, mas também um sacrifício; e, além disso, é considerada como a imolação do Corpo e do Sangue do Senhor não só nos usos da Igreja e nos livros dos Doutores, mas também na Sagrada Escritura.

As palavras do apóstolo são estas: “Fuja da adoração aos ídolos. Já que falo com pessoas prudentes, julgue por si mesmo o que digo. O cálice da bênção que abençoamos, não é a comunhão do Sangue de Cristo? O pão que partimos não é a comunhão do Corpo de Cristo? Porque todos nós que participamos do mesmo pão, embora muitos, nos tornamos um só pão, um só Corpo. Considere a Israel segundo a carne; aqueles que comem das vítimas entre eles não têm uma parte no altar? Quero dizer com isso que o ídolo ou o que é sacrificado aos ídolos vale alguma coisa? Não, mas as coisas que os gentios sacrificam, eles sacrificam para os demônios e não Deus. E eu não quero que vocês tenham qualquer parceria com os demônios; Você não pode beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios.” Isso é o que ele diz.

Com estas palavras fica claro que o Apóstolo coloca o “pão que partimos” e o “cálice da bênção” na mesma categoria das vítimas de Israel e das coisas sacrificadas aos demônios; que coloca a mesa do Senhor na mesma categoria que o altar de Israel e a mesa dos demônios; e coloca aqueles que comem da mesa do Senhor e bebem daquele cálice na mesma categoria daqueles que participam das vítimas de Israel e comem coisas mortas para demônios. Com essas razões, ele afirma que eles não podem tomar parte nas coisas sacrificadas a Deus e aos demônios.

Se o pão e o cálice de Cristo não fossem sacrificados a Deus, todos os argumentos de Paulo, tanto sobre as coisas sacrificadas ao verdadeiro Deus por Israel e aos demônios pelos gentios, entrariam em colapso.

Mas seu testemunho de como o pão e o cálice de Cristo foram imolados em seus dias é tão claro que dispensa explicação.

 

Quarto capítulo — Pela instituição de Cristo, a Eucaristia é imolada para a remissão dos pecados (Ex institutione Christi immolari Eucharistiam in remissionem peccatorum)

Com o mesmo mandamento de Nosso Senhor Jesus Cristo e seguindo o mesmo procedimento, a outra coisa que os luteranos negam pode ser facilmente refutada: que existe uma hóstia para a expiação dos pecados.

Em São Mateus 26,28, Nosso Senhor Jesus Cristo, tomando o cálice, não apenas disse: “Este é o meu Sangue que será derramado por vocês”, mas também acrescentou: “Para a remissão dos pecados”, e finalmente: “Fazei isto em memória de mim.”

Assim, no mandamento: “Fazei isto”, inclui-se fazer o Sangue de Cristo no cálice, imolando-o, não só enquanto se derrama, mas também enquanto é derramado por muitos para a remissão de seus pecados. O que exatamente essas palavras significam é que, assim como o derramamento de sangue para a remissão dos pecados é a própria vítima cruenta pelos nossos pecados, da mesma forma, fazer, como tal, o cálice [incruento do Sangue que é derramado para a remissão dos pecados] é realizar o único imolar do cálice de Sangue, assim que for derramado, para a remissão de pecados, enquanto realiza a mesma remissão. Derramar para a remissão de pecados é fazer a mesma remissão até onde for possível, independentemente do efeito. Portanto, não é uma invenção dos homens, mas [serve] para compreender e obedecer ao mandamento divino não apenas de oferecer o corpo e sangue de Cristo sob as espécies de pão e vinho em memória de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas também oferecê-los em expiação pelos pecados. Além disso, o usual em todas as Igrejas [a saber, a ideia da imolação de Cristo], não só latinas e gregas, mas também armênias, persas e outras espalhadas pela terra, é a melhor interpretação desta lei, pois desde os tempos antigos sempre a interpretaram dessa forma.

 

Quinto capítulo — Objeções da Epístola aos Hebreus contra o Sacrifício da Missa (Obiectiones ex Epistola ad Hebraeos contra sacrificium Missae)

Baseando-se em muitas passagens da Epístola aos Hebreus, cap. 7 a 10 inclusive, os luteranos se levantam contra essas duas coisas estabelecidas.

<Contra> a celebração diária da oferta da Eucaristia, eles respondem com três argumentos.

Em primeiro lugar, por causa da multiplicidade de sacerdotes. Pois, de acordo com esta epístola, a diferença entre Cristo, o sacerdote do Novo Testamento, e o sacerdote do Antigo Testamento é que Cristo é único, enquanto este último teve que se multiplicar, visto que Cristo é eterno, enquanto este último era temporário. Portanto, é inconveniente afirmar no Novo Testamento uma Hóstia para a qual um único sacerdote, Cristo, não é suficiente, mas requer um sacerdote que suceda a outro segundo a sucessão temporal, como vemos o que acontece com o sacrifício da Missa.

Em segundo lugar, por causa da repetição da oferta. Pois de acordo com esta Epístola, a diferença entre o sacrifício do Antigo Testamento e o do Novo consiste em que o primeiro era repetido todos os dias pelos sacerdotes simples e todos os anos pelas mãos do Sumo Sacerdote; ao passo que agora não se repete nem todos os dias nem todos os anos, mas é oferecido apenas uma vez. Portanto, é inconveniente afirmar no Novo Testamento um sacrifício que deve ser repetido com frequência.

Terceiro, por causa do que é oferecido. Pois de acordo com esta Epístola, a diferença entre o sacrifício do Antigo Testamento e o do Novo consiste em que então o sacerdote fazia uso do Sangue de cabras e outros animais, enquanto agora Cristo ofereceu seu próprio Sangue apenas uma vez.

Portanto, é inconveniente dizer que Ele se ofereceu por nós sob as espécies do pão e do vinho, visto que ofereceu a si mesmo mais do que o suficiente uma vez.

<Contra> a Eucaristia ser uma hóstia para a expiação dos pecados, eles também apresentam três argumentos.

Em primeiro lugar, por causa da reiteração, porque nesta mesma Epístola a reiteração das Hóstias é atribuída à incapacidade das Hóstias do Antigo Testamento de apagar os pecados. Se elas pudessem limpar os pecados, elas teriam deixado de se oferecer: é por isso que no Novo Testamento a oferta da Hóstia que tira os pecados não tem que ser repetida. Seria inconveniente, então, afirmar no Novo Testamento uma hóstia para a remissão dos pecados que deva ser repetida, como a Missa.

Segundo, por causa da suficiência do sacrifício de Cristo. Porque Cristo, oferecendo-se na cruz com uma única oferta, consuma todos os que se aproximam dele, etc. Portanto, adicionar no Novo Testamento outra Hóstia para a remissão dos pecados seria cometer uma injúria contra a enorme suficiência da hóstia de Cristo para todos os pecados do mundo.

Em terceiro lugar, por causa dos pecados perdoados, porque (como indicado naquela epístola), onde não há mais pecados para expiar, uma hóstia não é necessária para eles, mas já foram abolidos graças ao Novo Testamento que permaneceu rubricado com a morte de Cristo. Portanto, no Novo Testamento não há espaço para outra hóstia na remissão de pecados.

 

Sexto capítulo — Resposta às objeções (Responsio ad obiecta)

O fundamento da verdade e da compreensão das várias declarações da Sagrada Escritura sobre o sacrifício e o sacerdócio do Novo Testamento é que há apenas uma Hóstia, que foi simplesmente e absolutamente imolada em si mesma apenas uma vez pelo próprio Cristo, mas que sob certo aspecto é imolada todos os dias por Cristo por meio dos ministros em sua Igreja.

Portanto, no Novo Testamento há uma Hóstia cruenta e uma Hóstia incruenta, mas confessamos que a Hóstia cruenta é Jesus Cristo oferecido apenas uma vez no altar da Cruz pelos pecados de todo o mundo, e que a Hóstia incruenta foi instituída por Cristo e é o seu Corpo e Sangue sob as espécies do pão e do vinho, como indicam as citadas Escrituras. Na verdade, a hóstia cruenta e a hóstia incruenta não são duas Hóstias, mas uma, porque o que é Hóstia [vítima] é a mesma coisa [i.e., Cristo]. O Corpo de Cristo que está em nosso altar não é diferente daquele oferecido na Cruz, nem o Sangue de Cristo que está em nosso altar é diferente daquele derramado na Cruz.

O que é diferente é o modo de imolação desta única e mesma Hóstia. Porque aquele caminho único, substancial e original era sangrento, já que Cristo estava em sua própria figura, derramando seu Sangue na cruz quando seu Corpo foi partido; ao passo que esta, quotidiana, externa e acessória, é um caminho incruento, na medida em que, sob as espécies do pão e do vinho, representa, a título de imolação, Cristo oferecido na Cruz. Por isso, no Novo Testamento, a Hóstia cruenta e incruenta é única, tanto em termos da realidade que se oferece como da forma como é oferecida, embora haja uma diferença, visto que a última via — a imolação incruenta — não foi instituída como uma forma diferente de imolar em si mesma, mas apenas em relação à hóstia cruenta da Cruz. Isso é evidente para aqueles que entendem e compreendem que, se uma coisa só existe em relação a outra, só existe uma coisa. Portanto, eu diria que não se pode afirmar, propriamente falando, que no Novo Testamento há dois sacrifícios ou duas hóstias ou duas oblações ou imolações (não importa o nome que seja dado) pelo fato de haver a Hóstia cruenta de Cristo na Cruz e a Hóstia incruenta de Cristo no altar. Só existe uma Hóstia oferecida uma única vez na Cruz e que permanece, em forma de imolação, pela repetição diária de acordo com o que Cristo instituiu na Eucaristia.

Em nosso altar, incorporamos a perduração da Hóstia que foi oferecida na Cruz. Mas como que o que é oferecido na cruz e no altar é o mesmo — visto que o que é oferecido na cruz e o que é oferecido no altar é o mesmo Corpo de Cristo — é claro que a Hóstia no altar não é diferente daquela da Cruz, mas aquela mesma Hóstia que foi oferecida apenas uma vez na Cruz perdura, embora de outra forma, no altar, por Cristo: “Fazei isto em minha memória”. Se você relacionar essas duas coisas, isto é: “Fazei isto” e “em minha memória”, você vai perceber que aquela mesma e idêntica coisa que foi feita então faremos novamente em memória de Cristo: aquilo que então se partiu e se derramou é o que perdura sob as espécies de pão e vinho em memória de Cristo.

Depois do que foi dito, vamos esclarecer as objeções uma a uma.

¶ Para a primeira, sobre a unidade do sacerdote. No Novo Testamento há apenas um sacerdote, Cristo, e Ele mesmo é o sacerdote em nosso altar, pois os ministros não consagram o Corpo e o Sangue de Cristo a título pessoal, mas na pessoa de Cristo, como provam as palavras de consagração. Então, eles O oferecem atuando nas vezes de Cristo. O sacerdote não diz: “Este é o Corpo de Cristo”, mas antes: “Este é o meu Corpo”, fazendo — na pessoa de Cristo, como Ele ordenou: “Fazei isto” — o Corpo de Cristo sob as espécies de pão.

Quando somos respondidos que é inconveniente afirmar no Novo Testamento uma Hóstia para a qual Cristo não é suficiente, mas precisa de outros ministros para sucedê-lo, respondemos dizendo que afirmar uma Hóstia diferente que requer uma sucessão de sacerdotes não é o mesmo que afirmar a permanência da mesma Hóstia oferecida na Cruz, exigindo uma sucessão de ministros. O primeiro não se adequaria ao estado do Novo Testamento; enquanto a segunda está de acordo com ela, ou seja, que permanece em vigor a única vítima que foi oferecida apenas uma vez.

¶ À segunda, sobre a repetição, dizemos que no Novo Testamento o sacrifício ou oferta não se repete, mas que o único sacrifício que foi oferecido uma vez permanece [em nossos altares], na forma de imolação. A repetição ocorre apenas no modo de perdurar, não na coisa em si que é oferecida. Além disso, o mesmo modo que se repete não concorre com o sacrifício por si só, mas [existe] para comemorar a oferta na Cruz de uma forma incruenta.

Tal repetição não contradiz a doutrina da Epístola aos Hebreus, como é provado por aquelas palavras que dizem que se o sacrifício do Novo Testamento fosse repetido, seria necessário que Cristo sofresse várias vezes. É claro que essas palavras se referem à repetição do sacrifício [cruento] e não à repetição desta forma instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo.

¶ À terceira, que se refere ao que é oferecido, dizemos que ao fato de que Cristo uma vez derramou seu próprio Sangue, de maneira mais que suficiente e abundante, convém a ele permanecer na Sagrada Eucaristia, em forma de imolação daquele único e suficiente derrame de sangue na Cruz.

¶ Respondendo à primeira das objeções contrárias à Eucaristia na medida em que é uma hóstia pelos pecados, concordamos em dizer que no Antigo Testamento a reiteração da hóstia foi decretada por causa de sua impotência para apagar os pecados. Com o que nos é respondido, [a saber] que é inconveniente dizer que no Novo Testamento as hóstias devem ser multiplicadas pelos pecados, se fala-se propriamente, concordamos em tudo, porque na Missa a Hóstia não se multiplica, mas, em cada Missa, a mesma Hóstia que foi oferecida na cruz e que permanece na forma de imolação é comemorada novamente.

¶ À segunda, dizemos que é estranho ao espírito dos fiéis até mesmo pensar que a Missa é celebrada para complementar a eficácia da Hóstia que foi oferecida na Cruz. A Missa é celebrada como um veículo para a remissão dos pecados que Cristo obteve para nós na Cruz, de tal forma que, assim como não existe outra Hóstia, nenhuma outra pode nos alcançar a remissão dos pecados. Do mesmo modo que Cristo “entrou nos céus por seu próprio Sangue” e segue sendo “sacerdote por toda eternidade para interceder por nós” (como está escrito na epístola mencionada), também segue estando conosco através da Eucaristia, através da imolação, para interceder por nós. Assim como a máxima suficiência e eficácia do sacrifício no altar da Cruz não exclui que Cristo está no céu cumprindo seu ofício de intercessão por nós, tampouco exclui sua permanência entre nós por meio da imolação, para interceder por nós. Da mesma forma que a intercessão contínua de Cristo no céu por nós não anula a única intercessão de sua morte, tampouco — e menos ainda — anula sua permanência no caminho da imolação para interceder por nós e nos fazer participar do remissão dos pecados realizada no altar da cruz, quando sua intercessão é realizada através do mistério que está oculto sob as espécies do pão e do vinho (o do céu se realiza por meio de Cristo na mesma figura em que foi crucificado) .

Desse modo, se houvesse margem para qualquer derrogação, o fato de Cristo, depois de sua morte, interceder sob sua própria figura iria derrogar mais da única intercessão de sua morte do que fazê-la sob outra aparência, visto que a primeira intercessão supõe uma espécie de intercessão suplementar, enquanto esta segunda apenas supõe um modo cerimonial de intercessão que está mais de acordo conosco.

¶ À terceira dizemos que, com uma pitada de sal, deve-se entender que nossos pecados foram perdoados pela morte de Cristo, isto é, pela morte de Cristo que nos é aplicada por meio dos sacramentos que Ele instituiu. Nisto todos os cristãos concordam.

Entre os sacramentos instituídos por Cristo está o da Eucaristia, instituído por Cristo como uma imolação. É o que declaram as próprias palavras de Cristo e de São Paulo. Se, depois de terem recebido o Baptismo, há cristãos que precisam do perdão dos seus pecados, a Hóstia da Eucaristia pode ser usada para os perdoar, aplicando-lhes a eficácia da morte de Cristo; e se eles não precisam ter seus pecados perdoados, serve para o alimento da alma, bem como comida e bebida do corpo. Embora o sacramento da Eucaristia tenha sido instituído como uma imolação para aplicar àqueles que o celebram a expiação dos pecados feita pela cruz de Cristo, não foi instituído apenas para esta, mas também para outros bens da alma.

¶ Consequentemente, o Sacrifício da Missa, que a Igreja celebra segundo o ensinamento de Cristo e dos Apóstolos, está de acordo com tudo o que está escrito na Epístola aos Hebreus. E isto admitindo a extensão dos termos à Hóstia da Eucaristia, pois sei que segundo o seu sentido genuíno, o Autor daquela Epístola trata dos sacrifícios de sangue, demonstrando a excelência do sacrifício cruento — que Cristo ofereceu ao instituir o Novo Testamento — em relação a todos os sacrifícios do Antigo Testamento. Mas parece que é conveniente admitir essa extensão para que a verdade católica seja clara.

Dado em Roma, em 3 de maio de 1531.

 

Tratado do Sacrifício da Missa, editado pelo Revmo. Tomás de Vio Caetano, Cardeal de São Sisto.


Tradução feita por Villian Cuauhtlatoatzin.


Publicado originariamente em: <https://medium.com/@villianhs/sobre-o-sacrif%C3%ADcio-da-missa-e-seu-rito-contra-os-luteranos-cardeal-tom%C3%A1s-caetano-bd05ba014a30>.

terça-feira, 12 de abril de 2022

SAUDAÇÕES AFETUOSAS AO PRODIGIOSO SANTO ANTÔNIO

 


Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, sacrário do divino Espírito Santo: alcançai-me dele os dons e auxílios da graça.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, reclinatório de Deus-menino: consegui-nos dele a inocência daquela idade.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, amantíssimo filho de Maria santíssima: fazei-me também digno de tão soberana Mãe.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, deparador das coisas perdidas: não permitais que eu perca o caminho da eterna salvação.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, lírio formoso de pureza: inspirai-me amor entranhado à mais bela das virtudes.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, modelo perfeito de humildade: faze meu coração semelhante ao vosso.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, martelo formidável dos hereges: comunicai-me a verdadeira docilidade às doutrinas da Santa Igreja.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, luz brilhante do universo: iluminai a minha cegueira, para que fuja das trevas dos vícios e dos pecados.

Deus vos salve, meu glorioso Santo Antônio, serafim abrasado do amor divino: inflamai o meu coração neste fogo sagrado, para que sempre arda nas suas belas e amorosas chamas.


Oferecimento

Meu glorioso e amabilíssimo Santo Antônio, eu vos ofereço estas saudações e orações, em honra e veneração de vossas heroicas virtudes e santidade admirável, e vos peço humildemente me alcanceis de Deus, Senhor nosso, e de sua Mãe, Maria Santíssima, com quem valeis tanto, uma resolução firmíssima de seguir os vossos exemplos, de imitar as vossas ações, para que dirigindo os meus passos pelo exemplo das vossas virtudes, caminhe com segurança, por este vale de lágrimas, à eterna felicidade.

Também vos rogo que consigais do mesmo Senhor o remédio de todas as minhas necessidades, assim espirituais como corporais. Por vosso intermédio espero alcançar estes benefícios do Altíssimo e fico muito seguro de que não faltareis com a vossa proteção a quem confia tanto, como eu, no vosso amparo. Com ele vos peço valer-me também na hora de minha morte, para sair vitorioso dos combates infernais, e, livre o meu espírito das prisões desta vida mortal, ir lograr para sempre a perfeita liberdade dos filhos de Deus e gozar da sua visão em vossa companhia. Amém.

domingo, 10 de abril de 2022

OS SUPOSTOS IRMÃOS DE JESUS [1]

 


 



A publicação de hoje é em homenagem a uma amiga do apostolado, católica fervorosa e devotíssima de Nossa Senhora de Fátima. Nascida em 13 de Maio, essa grande amiga deixará saudades. Que Nossa Senhora a acolha na luz beatífica. Descanse em paz.



Uma objeção que os amigos protestantes fazem contra a virgindade da Mãe de Jesus é afirmar que ela teve outros filhos, além de Jesus.

Estando este argumento intimamente ligado à imaculada conceição, quero trata-lo aqui separadamente, embora não figure nos números do desafio[2].

Maria SS. teve ela outros filhos, depois do nascimento de Jesus? Resolvamos a questão de um modo irrefutável.

Para dar a esta objeção uma aparência de verdade, escolheram no Evangelho umas passagens que falam de tais irmãos, sem compreenderem a significação das palavras, e sem conhecerem os costumes dos judeus desses tempos remotos.

Em diversos lugares o Evangelho fala desses irmãos. Assim S. Mateus, S. Marcos e S. Lucas referem que estando Jesus a falar, disse-lhes alguém: eis que estão lá fora tua mãe e teus irmãos que querem ver-te (Mt 12, 46-47; Mc 3, 31-32; Lc 8, 19-20).

S. João, por sua vez, fala de tais irmãos (Jo 7, 1-10).

Ao ler estes passos, os amigos biblistas, que só enxergam palavras, e não sentidos, concluem imediatamente: A Bíblia fala de irmãos de Jesus, então Maria teve outros filhos e não é pura, nem virgem, como dizem os católicos.

Bela objeção, que mostra a supina ignorância dos biblistas. A invenção não é nova. Foi o herege Elpídio que, no século IV, moveu tal objeção, e foi S. Jerônimo que a refutou pela primeira vez.

 

I.                    Exemplos da Bíblia

 

Se os protestantes compreendessem um pouco a linguagem bíblica, ou soubessem, pelo menos, confrontar certas expressões, veriam logo que entre os judeus, -- como ainda hoje certos países e línguas, -- se chamam com o nome de irmãos não só os nascidos do mesmo pai e da mesma mãe, mas também os parentes próximos.

As línguas hebraica e aramaica não possuem palavra que traduza o nosso “primo ou prima”, e servem-se da palavra “irmão ou irmã”.

A palavra hebraica ha, e a aramaica aha, são empregadas para designar irmãos ou irmãs do mesmo pai, não da mesma mãe (Gn 37, 16; 42, 15; 43, 5; 12, 8-14; 39, 15), sobrinhos, primos irmãos (1 Cr 23, 21), e primos segundo (Lv 10, 4) – e até parentes em geral (Jó 19, 13-14; 42, 11).

Os passos acima provam que a palavra irmão era uma expressão genérica, geral.

Jesus, tendo pois primos, não havia outra palavra em aramaico senão “irmão” para exprimir o parentesco.

Há muitos exemplos na bíblia. Lê-se no Genesis que Taré era pai de Abraão e de Harão, e que Harão gerou Lot (Gn 11, 27), que, por conseguinte, vinha a ser sobrinho de Abraão.

Contudo no mesmo Gênesis, mais adiante, chama a Lot irmão de Abraão (Gn 13, 8)[3]. Disse Abraão a Lot: nós somos irmãos (Gn 14, 14). – Ouvindo pois Abraão que seu irmão (Lot) estava preso, armou os criados, etc.

Da mesma forma Jacob era sobrinho de Labão como se deduz também do Gênesis, que afirma ser Jacob filho da irmã de Labão: Ouvindo Labão as novas de sua irmã, correu-lhe ao encontro, etc. (Gn 24, 13).

Pois bem, ainda uma vez o Gênesis, dois versículos mais adiante, põe na boca de Labão estas palavras dirigidas ao sobrinho Jacob: Então porque tu és meu irmão, hás de servir-me de graça? (Gn 29, 15).

Tobias, o moço, era primo de Sara; Pois Tobias, o velho, pai do moço, e Raquel, pai de Sara, eram irmãos: Disse Raquel: conheceis Tobias, meu irmão? Etc. (Tob 7, 4-5). – Ora, o jovem Tobias dirigindo-se a Deus: Senhor, sabes que não é por motivo de luxúria que recebo por mulher esta minha irmã (Tob 7, 4-6). Os protestantes rasgaram este livro de Tobias.

Eis diversos passos que provam que a palavra irmão, na linguagem da Bíblia, significa, não somente irmãos, no sentido da nossa palavra, mas sim primos, sobrinhos, até ao terceiro grau.

 

II.                 Evangelho na mão

 

Vamos examinar a questão de perto e ver, pelas próprias palavras do Evangelho, que tais irmãos de Jesus são simplesmente seus primos.

Estes supostos irmãos são indicados por S. Marcos: Não é este o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, e de José, e de Judas e de Simão e não estão aqui conosco suas irmãs?[Mc 6, 3].

Jesus tem pois irmãos e irmãs. Não são irmãos consanguíneos, mas sim irmãos primos segundos, como o explica o próprio Evangelho.

Vejamos: O tal Tiago e Judas em vez de serem filhos de Maria SS. são filhos de Alfeu ou Cléofas. É S. Lucas que no-lo afirma: Chamou Tiago, filho de Alfeu... e Judas, irmão de Tiago (Lc 6, 15-16). – E ainda: chamou Judas, irmão de Tiago (Lc 6, 16).

Quanto a José, S. Mateus diz que é irmão de Tiago: Entre os quais estava... Maria, mãe de Tiago e de José (Mt 27, 56).

Eis agora Simão chamado irmão dos três outros. Tiago, José, Judas e Simão (Mc 6, 3). Estes quatro supostos irmãos de Jesus são, pois, verdadeiramente irmãos entre si, filhos do mesmo pai e da mesma mãe.

Falta agora só descobrir o nome dos seus pais. O Evangelho os indica: Chamou... Tiago, filho de Alfeu (Lc 6, 15). Alfeu ou Cléofas é, pois, o pai de Tiago e, em consequência, dos irmãos de Tiago, que são os três outros citados.

Conhecemos o pai. Procuremos agora a mãe deles. Conhecendo a mãe de um, é conhecida a mãe de todos, visto serem irmãos. Ora, o Evangelho é explicito: Entre as quais estavam Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago (Mt 27, 56).

Eis o mistério esclarecido: Tiago, José, Judas e Simão, tais pretensos irmãos de Jesus, são simplesmente filhos de Alfeu (Cléofas) e Maria (Cléofas), primos de Jesus, como indica o quadro que segue.

Os pobres protestantes confundem tudo... e não enxergam que tal Maria Cléofas é completamente distinta de Maria Santíssima, como faz notar o evangelista: Junto à Cruz de Jesus estava sua mãe e a irmã (prima) de sua Mãe, Maria, mulher de Cléofas (Jo 19, 25).

 

III.               Um dilema sem saída

 

Eis os pobres protestantes num dilema sem saída, e em flagrante contradição com o evangelho. Se tais irmãos são verdadeiramente irmãos consanguíneos de Jesus, é preciso concluir que Jesus não é filho de Maria SS., mas, sim, de Maria Cléofas e Alfeu.

Então Maria SS. não é mais Mãe de Deus, mãe de Jesus. Ora, o evangelho diz: Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus, que se chama o Cristo (Mt 1, 16). Jesus é filho de Maria SS. É claro e formal. Maria SS. era esposa de S. José: de novo é claro e positivo.

Mas, então, ó protestantes, como combinar estes passos do Evangelho? Um filho pode ter dois pais e duas mães? Jesus é filho de Maria SS., que era esposa de José. Tiago, José, Judas e Simão são filhos de Maria Cléofas e de Alfeu.

E tendes a coragem de dizer que estes últimos são irmãos de Jesus e filhos de Maria Santíssima!!!

É muita ignorância, ou então muita perfídia...

Procurai sair deste dilema! Ou o Evangelho mente ou vós caluniais descaradamente. E como o Evangelho é a palavra de Deus, infalível e certa, devemos concluir necessariamente que vós mentis e caluniais... ou que sois ignorantes obcecados, desconhecendo o que atacais e ignorando o que pretendes ensinar aos outros. O dilema é humilhante, irrefutável.

 

IV.               Genealogia de Jesus

 

Para poupar-vos, no futuro, erros tão grosseiros e ajudar-vos a compreender um pouco a Bíblia, cuja letra estudais sem penetrar até ao espírito que a anima, traço aqui a árvore genealógica de Jesus, baseada sobre a Sagrada Escritura, que vos mostrará clara e insofismavelmente toda a família de Jesus Cristo.

Por esta árvore vereis que os tais irmãos de Jesus, por serem filhos de Cléofas, que é irmão de S. José, e por consequência seus sobrinhos legítimos, são simplesmente primos segundos de Jesus, no mesmo grau que S. Tiago maior, S. João Evangelista e S. João Batista.

Falando destes outros, o Evangelho não os chama pessoalmente irmãos de Jesus. A razão é que os filhos de Cléofas, como sobrinhos de S. José, esposo de Maria SS., e ao mesmo tempo primos de Jesus pela descendência do pai, têm para com Jesus um duplo parentesco: Pelo pai e pelo tio, S. José. Os quatro primeiros são irmãos de Jesus; os outros quatro são seus irmãos parentes. Eis o que claramente resulta dos textos do Evangelho.

A seguinte árvore genealógica elucidará perfeitamente a questão, e dissipará qualquer dúvida.

   

MATAN

Pai de

MARIA

SOBÉ

ANA

JACOB

Mãe de

Mãe de

Mãe de

Pai de

 

SALOMÉ mulher de Zebedeu

 

S. ISABEL mulher de Zacarias

 

 

 

VIRGEM MARIA

 

 

CLÉOFAS esposo de Maria Salomé

 

 

S. JOSÉ esposo de Maria

Mãe de

Mãe de

Mãe de

Pai de

 

 

 

S. TIAGO MAIOR, S. JOÃO EVANGELISTA

 

 

S. JOÃO BATISTA

 

 

JESUS CRISTO

S. TIAGO MENOR, JOSÉ, JUDAS, SIMÃO, SALOMÉ E MARIA

 

 

V.                 Jesus, Filho Unigênito

 

É pois claro e bem provado, pelo próprio evangelho, que Maria SS. nunca teve outros filhos além de Jesus. Pura e Imaculada, a Mãe de Jesus nunca conheceu varão (LC 1, 34) e o filho de Deus que nasceu dela por obra do Espírito Santo (LC 1, 45) é o seu filho primogênito e unigênito, como diz o evangelho, em alusão à lei judaica.

Uma outra e decisiva prova encontra-se nas últimas palavra de Jesus na cruz, remetendo a sua mãe ao desvelo de S. João. Se Maria SS. tivesse tido outros filhos, Jesus a teria recomendado a um destes filhos, em vez de remetê-la nas mãos de um primo segundo. Jesus não teve irmãos, nem mais velhos nem mais novos. Toda a sua infância, a ida a Jerusalém, na idade de 12 anos, a vida em Nazaré, mostram claramente que a sagrada família nunca ultrapassou três membros: Jesus, Maria e José.

O evangelista S. Marcos chama Jesus O filho de Maria (Mc 6, 3) e não filho de Maria; o que supõe que Jesus fosse o filho único da viúva. Tais apelações de fato, diz o próprio Renan (Evang., Paris, p. 542), não se empregam senão quando o pai é falecido, e que a viúva não tem outros filhos.

Em parte nenhuma os tais supostos irmãos de Jesus partilham com ele este apelido de “filho de Maria”.

Maria SS. não teve, pois, nem mesmo podia ter, nenhum outro filho, além de Jesus.

Ela amava extremamente todas as virtudes, mas dum modo particular a rainha das virtudes, que é a virgindade.

Quando todas as donzelas de Israel ardentemente desejavam casar-se, na esperança de terem parte no nascimento do Messias, ela prometeu a Deus guardar perpetuamente a sua virgindade. Ela só aceitou a maternidade divina depois de ter-se certificado de que tal privilégio não contrariava a sua virgindade.

Ela casou-se com S. José, porque sabia que ele era um homem justo, que tinha feito a Deus solene promessa de perpetuamente guardar a sua virgindade.

O Evangelista nos assevera que S. José não conheceu Maria, durante todo o tempo em que ele ignorou o mistério da Encarnação. Como poderia ele desrespeitá-la, depois que o Verbo divino se encarnou e se fez homem em seu puríssimo seio?

É, pois, bem claro que Maria SS. não teve filhos com S. José.

 

VI.               Uma conclusão horrível

 

Mas então quem é o pai desses seus outros filhos, além de Jesus? Ainda ninguém o disse, nem nunca será capaz de dizê-lo.

Mistério incompreensível! Jesus espantou o mundo inteiro por seu saber, por seu poder, por suas virtudes; e tem irmãos e ninguém sabe quem é o pai de seus irmãos!

Maria SS. é notoriamente reconhecida como verdadeira mãe deste homem extraordinário, portentoso e santo; e ela comete um revoltante escândalo, e ninguém sabe quem é o cúmplice deste horroroso crime.

Pobre e infelizes protestantes, não compreendem que dizer que Maria SS. teve outros filhos além de Jesus é qualifica-la de impura, desonesta, de corrupta, adúltera! Oh! Quanto esta injúria, este insulto, esta calúnia deve magoar e ofender a Virgem Santa, tão extremosa amante da pobreza! Como deve ofender a Jesus, tão sensível à honra de sua progenitora!

Pobres protestantes, refleti um instante e compreendei enfim o que vos dita a consciência, o bom senso e a própria Bíblia, que dizeis ser a regra da vossa crença, e deixai de fechar os olhos à luz refulgente da doutrina católica.

 

 

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Observações do apostolado:

1) Em acréscimo ao maravilhoso texto do Pe. Júlio Maria de Lombaerde, diga-se que quando se diz de Tiago, irmão do Senhor (Gl 1, 19), se está referindo a S. Tiago menor, irmão de Judas, José e Simão. Isto porque S. Paulo diz que dos outros Apóstolos não vi nenhum, senão Tiago, irmão do Senhor (Gl 1, 19).

Ora, havia dentre os Apóstolos dois Tiagos, um era filho de Zebedeu e o outro era filho de Alfeu (Mc 3, 16-19). Não havia outro Tiago que fosse Apóstolo. Prova disso, aliás, é que um é chamado de o Menor (Mc 15, 40) em oposição ao outro, o Maior. Portanto, S. Paulo não se referia a outro que não fosse o Tiago irmão do Senhor, conforme dito por S. Marcos (6, 3), que, como vimos, é primo de Jesus.

 

2) Qual não foi a nossa surpresa, ao consultarmos a tradução de João Ferreira de Almeida, comumente utilizada pelo protestantes, notamos o seguinte: Disse Abrão a Ló: Não haja contenda entre mim e ti e entre os meus pastores e os teus pastores, porque somos parentes chegados (Gn 13, 8).

A tradução católica do Pe. Matos Soares, por sua vez: Disse, pois, Abrão a Loth: peço-te que não haja contendas entre mim e ti, nem entre os meus pastores e os teus pastores, porque somos irmãos (Gn 13, 8). No mesmo sentido a tradução da Bíblia de Jerusalém: pois somos irmãos (Gn 13, 8).

Também a tradução da Ave Maria: Abrão disse a Ló: “Rogo-te que não haja discórdia entre mim e ti, nem entre nossos pastores, pois somos irmãos...

Como se percebe, a tradução do padre apóstata João Ferreira de Almeida destoa do hebraico, talvez por tentar explicar que Abrão e Lot eram, na verdade, tio e sobrinho, talvez por tentar encobrir o uso do termo irmão para designar parentes próximos no hebraico. Seja como for, a tradução correta é irmãos e não parentes chegados.

Pois bem, vejamos o que diz o hebraico em Gn 13, 8:

  

                  וַיֹּאמֶר    אַבְרָם    אֶל-לוֹט     אַל-נָא     תְהִי

                         TËHY   AL-NÅ     EL-LOT   AVËRÅM   VAYOMER

 

                  מְרִיבָה     בֵּינִי           וּבֵינֶיךָ       וּבֵין      רֹעַי

                       ROAY UVEYN  UVEYNEYKHA  BEYNY MËRYVÅH

 

              :וּבֵין        רֹעֶיךָ           כִּי-אֲנָשִׁים        אַחִים        :אֲנָחְנוּ

              ANÅCHËNU:     ACHYM    KY-ANÅSHYM      ROEYKHA   UVEYN

 

O termo אַחִים, transliterado: ACHYM, quer dizer irmão.

Já em Gn 14, 14, o termo utilizado é אָחִיו, transliterado: ÅCHYV, que quer dizer também irmão, parente, etc.

João Ferreira traduziu este último versículo por sobrinho. O homem não quis dar o braço a torcer. O Pe. Matos Soares o traduziu por irmão.

Mas para não restar dúvida de que a palavra irmão era utilizada indiferentemente para designar seja um irmão por natureza seja um parente, vejam-se os seguintes exemplos:

Em Gn 24, 15 se diz que Nacor, irmão de Abraão... A palavra utilizada é אָחִי, transliteração: ACHY = irmão. E Nacor era irmão por natureza, ou consanguíneo, de Abraão, conforme Gn 11, 27.

Em Gn 24, 29 se diz que Rebeca tinha um irmão, chamado Labão... A palavra é אָח, cuja transliteração é ÅCH = irmão. Rebeca e Labão eram irmãos consanguíneos.

Já em Gn 29, 14-15 se diz: E, tendo passado Jacob um mês inteiro com Labão, disse-lhe este: Acaso, porque é meu irmão, me servirás de graça? A palavra utilizada é אָחִי, transliteração: ÅCHY = irmão. No entanto, Labão era irmão de Rebeca, filho de Batuel, e este era filho de Melca e Nacor (Gn 22, 20-23). Este último era irmão de Abraão. Jacó, por sua vez, era filho de Issac e neto de Abraão. Portanto, Jacó e Labão eram primos distantes, não irmãos. Mas a palavra hebraica utilizada é a mesma.

Assim, caro protestante apressadinho, não alegue que na sua bíblia são utilizadas palavras diferentes: irmão, sobrinho, parentes chegados..., pois essas distinções são do português, não do hebraico[4]. 

 

 



[1] Extraído do livro Luz nas Trevas – Respostas irrefutáveis às objeções protestantes, do Pe. Júlio Maria de Lombaerde.

[2] O Pe. Júlio Maria estava respondendo a alguns desafios propostos pelos protestantes. Este opúsculo segue-se ao que respondia cabalmente à objeção protestante contra a Imaculada Conceição.

[3] Ao leitor protestante apressadinho que tenha consultado a sua versão João Ferreira de Almeida, consulte também a observação 2.

[4] Faremos em breve, com a ajuda de Deus, uma publicação demonstrando os erros de tradução da bíblia João Ferreira de Almeida.

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