terça-feira, 11 de outubro de 2022

PECADO ORIGINAL - SANTO TOMÁS DE AQUINO

 

Adão e Eva expulsos do Éden (1866), de Gustave Doré 



Trecho do Compêndio de Teologia de Santo Tomás de Aquino a respeito do pecado original. Tradução de Carlos Nougué.



Capítulo 188
Da árvore da ciência do bem e do mal,
e do primeiro preceito dado ao homem

Porque porém o referido estado do homem dependia de que a vontade humana se sujeitasse a Deus, para que desde o princípio se acostumasse a seguir a vontade de Deus, Deus propôs ao homem alguns preceitos, a saber, que comesse de todas as árvores do Paraíso, proibindo-lhe todavia com ameaça de morte que comesse da árvore da ciência do bem e do mal; e sem dúvida se proibiu que comesse desta árvore não porque fosse de si má, mas para que o homem ao menos nesta pequena coisa observasse algo pela simples razão de que era preceituado por Deus: daí que comer desta árvore se tenha tornado mau, porque proibido.

Mas tal árvore se dizia da ciência do bem e do mal não porque tivesse virtude causativa da ciência, mas pelo evento seqüente, ou seja, porque o homem por ter comido dela aprendeu por experiência a distância que medeia entre o bem da obediência e o mal da desobediência.


Capítulo 189
Da sedução de Eva pelo Diabo

Por conseguinte, o Diabo, que já pecara, vendo o homem de tal modo instituído para a felicidade perpétua de que ele caíra, e que [aquele] igualmente poderia pecar, empreendeu desviá-lo da retidão da justiça atacando o homem pela parte mais fraca, ou seja, tentando à mulher, na qual menos vigia o dom ou a luz da sabedoria:[1] e, a fim de incliná-la de modo mais fácil à transgressão do preceito, excluiu mendazmente o medo da morte, e prometeu-lhe o que o homem naturalmente apetece, isto é, a evitação da ignorância, dizendo [Gn 3, 5]: “se abrirão vossos olhos”; e a excelência da dignidade: [“sereis como deuses”; e a perfeição da ciência:][2] “conhecendo o bem e o mal”. O homem, com efeito, da parte do intelecto naturalmente foge à ignorância, e apetece a ciência; mas da parte da vontade, que é naturalmente livre, apetece a excelsitude e a perfeição para não estar submetido a ninguém, ou ao menor número possível.


Capítulo 190
O que induziu a mulher [a pecar]

A mulher, portanto, cobiçou a excelsitude prometida e ao mesmo tempo a perfeição da ciência. Para isso concorreram também a beleza e a suavidade do fruto, o que incitava a comê-lo, e assim, desprezando o medo da morte, transgrediu o preceito de Deus de não comer da árvore proibida: e assim seu pecado se encontra multiplicado. Em primeiro lugar, sem dúvida, [é] de soberba, porque apeteceu desordenadamente a excelência. Em segundo, de curiosidade, porque cobiçou uma ciência para além dos limites prefixados. Em terceiro, de gula, porque a suavidade do alimento a excitou a comê-lo. Em quarto, de infidelidade, pela falsa estimação de Deus, enquanto creu nas palavras do Diabo contra o que dissera Deus. Em quinto, de desobediência, por transgredir o preceito de Deus.


Capítulo 191
De que modo chegou ao homem o pecado

Mas por persuasão da mulher o pecado logo chegou ao homem, que, todavia, como diz o Apóstolo [1 Tim 2, 14], não foi seduzido como a mulher, quer dizer, não creu nas palavras do Diabo contra o que dissera Deus. Com efeito, não podia entrar em sua mente que Deus tivesse podido cominar algo mendazmente, nem proibir inutilmente uma coisa útil. Foi induzido, contudo, pela promessa do Diabo, apetecendo indevidamente a excelência e a ciência. Com isso sua vontade se desviava da retidão da justiça, e, querendo atender ao capricho da mulher, secundou-a na transgressão do divino preceito, comendo do fruto da árvore proibida.


Capítulo 192
Do efeito que se seguiu da culpa quanto à
rebelião das virtudes inferiores à razão

Dado, portanto, que a tão ordenada integridade do dito estado era de todo causada pela sujeição da vontade humana a Deus, foi consequente que, subtraída a vontade humana à sujeição divina, decaísse a perfeita sujeição das virtudes inferiores à razão, e a do corpo à alma: por isso se seguiu que o homem sentisse no apetite sensível inferior movimentos desordenados da concupiscência e da ira e das outras paixões não segundo a ordem da razão, mas antes repugnantes, ordinariamente obnubilantes e de certo modo perturbantes dela: e esta é a repugnância da carne ao espírito de que fala a Escritura [Rm 5, 14-25; Gl 5, 16-26]. Pois, como o apetite sensitivo, tal como as demais virtudes sensitivas, opera por instrumento corpóreo, mas a razão sem nenhum órgão corporal, convenientemente o que pertence ao apetite sensitivo se imputa à carne; o que porém [pertence] à razão [imputa-se] ao espírito, enquanto sói dizer-se que as substâncias espirituais são separadas dos corpos.


Capítulo 193
De que modo se introduziu a pena quanto à necessidade de morrer

Seguiu-se também que no corpo se sentissem os defeitos da corrupção, razão por que o homem incorreria na necessidade de morrer, sendo [a alma] como incapaz de conter para sempre o corpo fornecendo-lhe vida: por isso o homem se fez passível e mortal, não só como podendo padecer e morrer como antes, mas como tendo necessidade de padecer e de morrer.


Capítulo 194
Dos outros defeitos que se seguiram no intelecto e na vontade

Seguiram-se no homem, por conseguinte, muitos outros defeitos. Com efeito, por serem abundantes no apetite inferior os movimentos desordenados das paixões, ao mesmo tempo que faltava na razão a luz da sabedoria, mediante a qual era ilustrada por Deus quando a vontade era sujeita a ele, conseqüentemente seu afeto se submeteu às coisas sensíveis, nas quais afastando-se de Deus pecou muitas vezes, e além disso se submeteu aos espíritos imundos crendo que eles lhe prestariam auxílio em sua ação por adquirir tais coisas: e assim apareceram no gênero humano a idolatria e os diversos gêneros de pecados; e, quanto mais se corrompeu nestes o homem, mais retrocedeu do conhecimento e do desejo dos bens espirituais e divinos.


Capítulo 195
De que modo estes defeitos passaram para os pósteros

E, como o bem da referida justiça original foi atribuído por Deus ao gênero humano no primeiro pai, para que por ele, porém, se passasse aos pósteros, e como, removida a causa, se remove o efeito, foi conseqüente que, assim como o primeiro homem se viu privado de tal bem pelo pecado próprio, assim também todos os pósteros se viram privados dele, e assim sucessivamente, ou seja, após o pecado do primeiro pai todos nasceram sem a justiça original e com os conseqüentes defeitos. Tampouco é contra a ordem da justiça que Deus puna nos filhos a falta que o primeiro pai cometeu, porque esta pena não é senão o subtrair deles os [bens] que sobrenaturalmente Deus concedeu ao primeiro homem, e que por ele passariam aos demais: daí que aos demais não se lhe devessem senão enquanto lhes eram transmitidos pelo primeiro pai. Assim, se um rei dá a um soldado um feudo transmissível por ele aos herdeiros, mas o soldado peca contra o rei de modo que mereça perder o feudo, não pode passá-lo depois aos herdeiros: daí que os pósteros se vejam justamente privados por culpa do pai.


Capítulo 196
Se a falta da justiça original tem razão de culpa nos pósteros

Mas permanece a questão mais urgente: se a falta da justiça original nos que descendem do primeiro pai pode ter razão de culpa. Com efeito, como se disse acima [c. 120], parece pertencer à razão de culpa que o mal que se diz culpável esteja em poder daquele a quem se imputa a culpa. Certamente, ninguém é culpado do que não está nele fazer ou não fazer. Mas não está em poder de quem nasce que nasça com a justiça original ou sem ela: por isso parece que tal falta não pode ter razão de culpa.

Mas esta questão se resolve facilmente, se se distingue entre pessoa e natureza. Assim, com efeito, como em uma pessoa muitos são os membros, assim também em uma natureza humana muitas são as pessoas, de modo que pela participação na espécie muitos homens são inteligidos como um homem, como diz Porfírio.[3] Mas deve advertir-se que no pecado de um homem, que pelos diversos membros comete diversos pecados, não se requer para a razão de culpa que cada um dos pecados seja voluntário pela vontade dos membros que os cometem, mas pela vontade do que no homem é principal, ou seja, a parte intelectiva. Com efeito, a mão não pode não percutir ou os pés [não podem] não andar sem que o ordene a vontade. Desse modo, portanto, a falta da justiça original é pecado da natureza, enquanto deriva da vontade desordenada do primeiro princípio da natureza humana, ou seja, o primeiro pai, e assim é voluntário com respeito à natureza, ou seja, pela vontade do primeiro princípio da natureza; e assim se transmite a todos os que recebem dele a natureza humana, como se fossem membros seus: e por isso se diz pecado original, porque pela origem passa do primeiro pai para os pósteros. Daí que, conquanto os outros pecados, ou seja, os atuais, se reportem imediatamente à pessoa pecante, aquele se reporta diretamente à natureza. Porque por seu pecado o primeiro pai infectou a natureza, e, infectada, a natureza infecta a pessoa dos filhos, que a recebem do primeiro pai.


Capítulo 197
Nem todos os pecados se transmitem aos pósteros

Não é necessário, todavia, que todos os outros pecados do primeiro pai ou dos demais se transmitam aos pósteros, porque o primeiro pecado do primeiro pai suspendeu todo o dom que sobrenaturalmente se infundira na natureza humana da pessoa do primeiro pai, e assim se diz que corrompeu ou infectou a natureza: daí que os pecados conseguintes não encontrem nada tal que possam subtrair a toda a natureza humana, senão que tiram ou diminuem do homem algum bem particular, ou seja, pessoal, nem corrompam a natureza senão enquanto pertence a esta ou àquela pessoa. O homem todavia não gera um semelhante a ele em pessoa, mas em natureza: e por isso não se transmite do pai para os pósteros o pecado que vicia a pessoa, mas só o primeiro pecado que viciou a natureza.





_________________
[1] Trata-se de que a capacidade abstrativa é mais propícia ao homem em razão de sua constituição física. Di-lo-ia no século XX, com outros termos, a alemã Edith Stein: o homem é mais abstrato; a mulher, mais concreta; ele, mais contemplativo; ela, mais prática.

[2] O que se lê entre colchetes não está no Corpus Thomisticum; traduziu-se da Leonina, e parece indispensável.

[3] Isagoge, na versão de Boécio (Arist. Latin., I, 6-7, ed. L. Minio-Paluello, Bruges-Paris, 1966, p. 12, lin. 9).

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