Compêndio de Teologia, Santo Tomás de Aquino - Tradução de Carlos Nougué
Capítulo 226
Dos defeitos assumidos por Cristo
Assim contudo como foi conveniente que o Filho de Deus, ao assumir a natureza humana para a salvação dos homens, mostrasse na natureza assumida o fim da salvação humana pela perfeição da graça e da sabedoria, assim também foi conveniente que na natureza humana assumida pelo Verbo de Deus existissem algumas condições que fossem congruentes com o modo mais adequado de libertar o gênero humano. Mas foi o modo mais congruente que o homem, que por uma injustiça perecera, fosse reparado pela justiça. A ordem da justiça, porém, exige que quem pecando se fez devedor de pena seja livrado pela solução da pena. Como porém o que pelos amigos fazemos ou padecemos vemos que de certo modo o fazemos ou suportamos por nós mesmos, porque o amor é virtude mútua que de dois que se amam de algum modo faz um, não discorda da ordem da justiça se alguém é livrado por um amigo que satisfaça por ele. Pelo pecado do primeiro pai, todavia, a perdição chegou a todo o gênero humano, razão por que a pena de nenhum homem podia ser suficiente para livrar todo o gênero humano. Com efeito, não havia satisfação condigna equivalente para que todos os homens fossem livrados pela satisfação de um simples homem. Semelhantemente, tampouco era suficiente segundo a justiça que um anjo por amor ao gênero humano satisfizesse por ele: o anjo não tem dignidade infinita para que por pecados infinitos de infinitos [pecadores] sua satisfação pudesse bastar [1]. Só Deus porém é de dignidade infinita para que, assumindo carne, pudesse satisfazer suficientemente pelo homem, como acima já dissemos [c. 200]. Por conseguinte, para satisfazer pelo homem, foi necessário que ele assumisse tal natureza, na qual pudesse padecer pelo homem o que pecando o homem mereceu padecer.
Mas nem toda e qualquer pena em que incorreu o homem ao pecar é idônea para satisfazer. Com efeito, o pecado proveio ao homem de ter-se afastado de Deus e ter-se voltado para os bens mutáveis. O homem porém é punido pelo pecado em duas coisas. Porque tanto é privado da graça e dos demais bens pelos quais estava conjungido a Deus como merece padecer dificuldade e defeito naquilo pelo qual se afastou de Deus. Logo, tal ordem de satisfação requer que seja reconduzido a Deus mediante as penas que padece nos bens mutáveis. Ora, são contrárias a tal recondução as penas pelas quais o homem se separa de Deus. Por conseguinte, ninguém satisfaz a Deus por estar privado da graça, ou por ignorar a Deus, ou por ter a alma desordenada, ainda que tudo isto seja pena do pecado, e sim por sentir alguma dor em si mesmo, ou algum dano nas coisas exteriores. Logo, ainda que sejam pena do pecado, Cristo não devia assumir os defeitos pelos quais o homem se separa de Deus, como a privação da graça, a ignorância e outros que tais. Com isto, com efeito, tornar-se-ia menos idôneo para satisfazer; mais ainda, para que fosse o autor da salvação humana, requeria-se que possuísse a plenitude da graça e da sabedoria, como já se disse [c. 4-6].
Como no entanto o homem pelo pecado fora posto na necessidade de morrer e de ser passível segundo o corpo e segundo a alma, Cristo quis tomar tais defeitos para padecendo a morte pelos homens redimir o gênero humano.
Há que atender, no entanto, a que tais defeitos são comuns a nós e a Cristo. Mas encontram-se em Cristo e em nós por distinta razão: sem dúvida, tais defeitos, como se disse [c. 193-195], são pena do primeiro pecado. Como, portanto, nós contraímos uma culpa original pela origem viciada, consequentemente dizemos que contraímos tais defeitos. Mas Cristo não contraiu nenhuma mancha de pecado por sua origem, senão que recebeu estes defeitos por sua vontade, razão por que não deve dizer-se que contraiu estes defeitos, mas antes que os assumiu. Sem dúvida, contrai-se o que necessariamente se traz com outro [2]. Cristo porém pôde assumir a natureza humana sem tais defeitos, assim como a assumiu sem a infâmia da culpa: e a ordem da razão parecia exigir que quem esteve isento de culpa fosse isento de pena. E assim patenteia-se que tais defeitos não estiveram nele por nenhuma necessidade, nem de origem viciada, nem de justiça: por isso resta que nele não tenham sido contraídos, mas voluntariamente assumidos.
Como todavia nosso corpo está submetido aos referidos defeitos em pena do pecado, porque antes do pecado éramos isentos deles, diz-se que convenientemente Cristo, enquanto assumiu tais defeitos em sua carne, se revestiu da aparência do pecado, como diz o Apóstolo na Epístola aos Romanos (8, 3): “Deus enviou seu filho em semelhança de carne de pecado”. Daí que tanto à passibilidade de Cristo como à sua paixão o Apóstolo as chame pecado, quando acrescenta: “e do pecado condenou o pecado na carne”, e na Epístola aos Romanos (6, 10): “morreu para o pecado, morreu uma só vez”. E o que é mais admirável: também por esta razão diz o Apóstolo na Epístola aos Gálatas (3, 13) que “se fez maldito por nós”. Também por esta razão se diz que assumiu uma simples necessidade nossa, ou seja, a da pena, para consumar nossas duas, ou seja, a da culpa e a da pena [3].
Deve considerar-se, ademais, que se encontra dupla sorte de defeitos penais no corpo. Uns comuns a todos, como a fome, a sede, a fadiga depois do trabalho, a dor, a morte e outros que tais. Outros, porém, não são comuns a todos, mas próprios de alguns homens, como a cegueira, a lepra, a febre, a mutilação de membros e outros que tais. Mas há diferença entre esses defeitos: porque os defeitos comuns nos são transmitidos por outro, ou seja, pelo primeiro pai, que incorreu neles pelo pecado; no entanto, os defeitos próprios produzem-se em cada homem por causas particulares. Mas Cristo não tinha em si nenhuma causa de defeito, nem da parte da alma, que era plena de graça e de sabedoria, e unida ao Verbo de Deus, nem da parte do corpo, que era otimamente organizado e disposto, composto que fora pela virtude todo-poderosa do Espírito Santo; contudo, sua vontade, a fim de procurar-nos nossa salvação, recebeu como concessivamente alguns defeitos. Devia receber, portanto, os que passam de um para os outros, ou seja, os comuns, mas não os próprios, que nascem em cada um das causas próprias. Semelhantemente, ademais, porque viera principalmente para restaurar a natureza humana, devia receber os defeitos que se encontravam em toda [esta] natureza.
Patenteia-se também segundo o dito que, como diz o Damasceno [4], Cristo assumiu nossos defeitos indenigríveis, isto é, os que não podem denigrir-se. Sem dúvida, se tivesse adotado defeito de ciência ou de graça, ou ainda lepra, ou cegueira, ou qualquer outro que tais, tal pareceria pertencer à derrogação da dignidade de Cristo, e dar-se-ia ocasião aos homens de denigri-lo, o que não dão os defeitos de toda a natureza.
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[1] Não se trata, obviamente, de pecados e pecadores infinitos em ato, mas só em potência. Ou pode considerar-se, talvez melhor, que infinitos se diz aqui ao modo de hipérbole.
[2] Atente-se a que em latim contrahitur ('contrair-se') é precisamente trahitur cum ('traz-se com').
[3] Cf. Pedro Lombardo, Sent., I. 3, d. 15, c. 1.
[4] De fide orthod., I. 3, c. 20 (MG 94, 1081 A).
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